Depois de discorrer sobre o aborto há pouco mais de um mês nesta seção, não tratar de um assunto inerente ao tema em um momento como agora seria fechar os olhos para fatos. Na semana passada, a realidade deixou um gosto amargo para quem defende a liberdade de as mulheres decidirem sobre os próprios corpos. Direitos reprodutivos previstos em lei — que ainda requerem aprimoramentos, com certeza — estiveram no centro de questionamentos e levaram a ações lamentáveis.
A ver: juíza revitimiza menina que sofreu violência sexual e a induz a desistir do aborto — procedimento legalmente assegurado em casos de estupro; profissional de saúde vaza informações pessoais de paciente que escolheu entregar para adoção a criança à qual deu à luz — possibilidade que também tem respaldo na lei; Suprema Corte dos Estados Unidos derruba garantia constitucional de interrupção da gravidez no país — estabelecida, até então, desde 1973.
Em todas as notícias citadas, há algo em comum. Direitos invalidados. Algumas das decisões ganharam, inclusive, apoio de figuras da política brasileira. Às mulheres, com os comportamentos sujeitos a escrutínio desde muito novas, sobra a sensação de impotência em face da constante necessidade de adivinhar em que ou em quem podem confiar. O poço da misoginia parece mais fundo com o passar do tempo.
Poucos anos atrás, o discurso sobre empoderamento feminino ganhou espaço, e a ideia se tornou palatável para um público maior, o que levou adiante o conceito de que elas devem ter domínio sobre as próprias vidas e vontades. Contudo, as frequentes violações a direitos arduamente conquistados mostram ser necessário ir além, em um movimento amplo, massivo, conjunto e que inclua os mais diversos agentes — cidadãs, cidadãos, empresas, Estado —, pois as mudanças que resultarão disso, para o bem ou para o mal, terão efeito sobre todas as mulheres.
Há urgência na transformação do cenário, para que poder público e sociedade definam caminhos em direção à emancipação das mulheres. Sobre os direitos reprodutivos, enquanto uma abordagem do assunto como questão de saúde pública, como deve ser, não chegar aos espaços de decisão na forma de um debate progressista, as vozes conservadoras continuarão a ecoar em diferentes instituições e meios, sob justificativas variadas — e, por vezes, pavorosas —, mas nunca em nome da proteção da liberdade feminina.