Análise

Artigo: Silêncios e apagamento negro no país

JANAÍNA R. THEODORO - Formada em letras, especialista no ensino de português como segunda língua para pessoas surdas, é professora da rede pública do DF

Como negar o projeto nacional de apagamento da população negra? Como refutar que somos uma nação profundamente racista e preconceituosa? Como não destacar que o racismo sistêmico age para apagar de nossas memórias as lutas e conquistas do povo negro? Insiste-se em silenciar o legado atroz da escravidão e não reconhecer o protagonismo negro na fundamentação do Brasil. Por quê?

Há quem acredite que o Brasil não deu certo. Ledo engano. O projeto de Estado institucional se fundamenta, desde seu suposto "descobrimento", na perpetuação de apenas um determinado grupo no poder. Por séculos, o Brasil foi o maior império escravista do hemisfério ocidental, tendo sua força econômica baseada no tráfico negreiro.

Esse grupo dominante nunca se preocupou em distribuir rendas e terras, compartilhar conhecimentos, reconhecer direitos e construir uma nação realmente democrática. A tragédia da escravidão se mantém. Há um projeto em andamento, pois a desigualdade social aflige de forma mais aguda a população negra e sua descendência já abandonada, logo após a abolição da escravatura.

O genocídio negro continua acontecendo nas suas formas física, social, histórica e cultural. Admite-se a continuidade da escravidão quando se silencia diante dos índices devastadores e alarmantes da maioria da população negra.

Nosso presente anda assombrado pelo nosso passado. A construção da identidade nacional perpassa por uma reconciliação com o passado. A história precisa ser (re)escrita, destacando a pluralidade da nossa formação. Uma história que deverá relembrar as cicatrizes dos corpos açoitados, se antepor à construção de mitos como uma escravidão romanceada, analisar argumentos elaborados com bases na ciência e na religião, destacando as atrocidades.

O Brasil oficial precisa, urgentemente, pautar, na agenda, discussões e ações sobre a inclusão dos povos tradicionais nos interesses do país. As histórias que se pretende esquecer são muitas. Aqui, esquecer implica esconder; em tornar as vítimas desse sequestro, desse holocausto, algozes das própria narrativa. Porém, o silêncio tem sido atravessado por vozes que se cruzam entre o passado e o presente; entre o hoje e o ontem; entre a vida e a morte.

Para este texto, trago a importância do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos/Sítio arqueológico — Cemitério (IPN), um dos exemplos de como é possível testemunhar e ocultar a presença da escravidão negra no Brasil. O Cemitério dos Pretos Novos funcionou de 1772 a 1830, fez parte do maior complexo comercial escravagista das Américas, situado na zona portuária do Rio de Janeiro. Foi o mercado de escravos, compra e venda de cativos. Fazia parte dessa estrutura o Lazareto da Gamboa, uma instalação destinada à quarentena e ao tratamento de doenças infecciosas de negros que chegavam ao território nacional.

O cemitério dos Pretos Novos tinha como função sepultar os escravizados que morriam antes de serem comercializados. De 1830 a 1996, o cemitério manteve-se esquecido, soterrado, assim como seus corpos e seus mortos — 166 anos silenciados, em nome de uma política pós-abolicionista de progresso e branquitude. O espetáculo de horror da escravidão deveria ser apagado.

Em janeiro de 1996, após uma reforma em sua casa, localizada na Gamboa, no Rio de Janeiro, o casal Guimarães localiza o Cemitério dos Pretos Novos. Desde sua descoberta, até os dias atuais, o IPN mantém suas atividades com participação de voluntários, doações particulares, curso de pós-gradução e, principalmente, com as ações efetivas e afetivas de Mercedes e Petrucio. O IPN dedica-se ao estudo, à extensão e à preservação da memória negra. O investimento na divulgação, na pesquisa, na capacitação contínua visa resistir a qualquer forma de apagar ou silenciar a história real.

Nesse recorte, verifica-se um Projeto Brasil bem estruturado, em seus conceitos de silenciamento e apagamento da história das pessoas negras. Há um presente impregnado de passado. Não se vê, por parte do Estado, interesse na manutenção do IPN. Este, por sua vez, além de todas suas atribuições, honra e dignifica os mortos ali enterrados, restabelecendo suas linhagens ancestrais. Rever esse projeto se faz necessário, pois corpos negros continuam sendo enterrados em valas como indigentes, sem história, sem chão.

O Cemitério dos Pretos Novos, assim como outros marcos históricos da escravidão são lembretes de que, por mais que se tente, não há como enterrar o que está à flor da terra, não há como negar o que está à flor da pele.

 

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