Sociedade

Artigo: A expropriação da família, saúde e educação

DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR - Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, ex-presidente do Global Pediatric Education Consortium (GPEC)

Saúde e educação são componentes insubstituíveis para a construção e funcionamento de uma sociedade verdadeiramente humana. Ambos pressupõem o sagrado compromisso com o progresso evolutivo da espécie Homo sapiens, sem o qual não surge o cenário apropriado de uma vida digna, saudável, fraterna e interativa. Por isso, vale dizer que sem saúde não há educação e sem educação não há saúde.

Na verdade, o conceito real e coerente de saúde é definido como o bem-estar físico, mental e social do indivíduo. E o da educação, segundo o pensador Cícero, da era romana, é amamentar, proteger e instruir. São os legados preciosos de um núcleo familiar pleno de afeto, respeito e amor, estímulos deveras humanistas capazes de contribuir para a saúde e a educação de seus filhos. Família é a fonte única e insubstituível de novas gerações cujas personalidades estarão solidamente estruturadas com valores mentais e intelectuais projetados muito bem acima do materialismo que, infelizmente, passou a dominar a sociedade humana.

Com efeito, o núcleo verdadeiramente familiar tornou-se raro. Os que ainda existem enfrentam, a duras penas, a contagiosa avalanche consumista que padroniza perfis comportamentais materialistas em favor de interesses econômicos que nada têm de humanitários.

A era atualmente estabelecida no planeta Terra baseia-se no domínio da tecnologia, cada vez mais empoderada graças às ilusões que vão muito além das verdadeiras ações produtivas e criativas em favor da humanidade. De fato, a espécie vai perdendo sua inteligência natural, já em grande parte substituída pela inteligência artificial, dominante das novas gerações, em favor do império que já exerce seu poder de condicionamento comportamental em favor de interesses dominantes. Desaparece, então, a prática dialogal e altruísta que é a única forma de desfazer a desigualdade social que modela as populações atuais.

A interação presencial das pessoas é insubstituível como metodologia educativa da mais humana qualidade. Sem isso, é desestimulada a convivência entre os seres humanos, que é a alma da verdadeira sociedade. Prova incontestável é o crescimento da educação a distância, ampliada totalmente durante a pandemia. As gerações de estudantes tornaram-se vítimas desse faz de conta pedagógico. Prosperam escolas e universidades virtuais que assumem o comando de tão valiosa fase de formação educativa do futuro cidadão. Assim, o potencial cognitivo inerente a uma infância bem cuidada é desprezado em benefício do império da inteligência artificial, que comanda o espetáculo em desfavor da sociedade deveras humana.

As evidências da desconstrução do humanismo são claras e bem anteriores à pandemia, que apenas contribuiu para o seu avanço acelerado. A educação a distância é uma prova de artificialização da inteligência, que já assume plena dimensão em desfavor do ser humano. A deterioração tecnológica dos valores éticos, morais e espirituais, que iluminaram a mente da espécie ao longo de sua história, ameaça, pois, a sobrevivência dos sólidos pilares da civilização.

O novo império materialista contamina também a assistência à saúde, deturpando-a, por completo, em benefício das empresas que coordenam a nova era. A promoção do bem-estar físico, mental e social do indivíduo é ilusoriamente restrita ao diagnóstico e tratamento medicamentoso ou cirúrgico das enfermidades que avançam a olhos vistos. A prevenção das doenças não é tida como prioridade absoluta.

As profissões ligadas à saúde da população já não valorizam o conteúdo humanista em que deveriam se inspirar. Ademais, o exercício da medicina tornou-se refém da inteligência artificial. A profissão já é exercida a distância como a educação. Para que tudo isso seja revertido em favor da reconstrução da humanidade, ações abrangentes precisam ser desenvolvidas com metas bem objetivas. Incluem a recuperação do núcleo familiar com medidas respeitosas e capazes de assegurar os recursos orçamentários de tal investimento; a volta da educação presencial, interativa e comprometida com a defesa da inteligência natural; e a revigoração do conceito humanista de saúde para superar a telemedicina com o reforço da assistência médica presencial.

O pensador Ivan Illich produziu, em 1975, a obra A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Trata-se de um alerta que previu a deterioração da saúde em favor de interesses econômicos. Nada foi feito para revertê-lo. Assim o estrago avançou rumo à expropriação da família, saúde e educação.

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