Trinta e três milhões de brasileiros passam fome no país — um aumento de 14 milhões em relação ao contingente de 19 milhões estimado em 2020. O trágico retrocesso foi constatado pelo Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), divulgado ontem pela Oxfam, organização não governamental. Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril último, nos perímetros urbano e rural, em todas as cinco regiões do país.
De acordo com o estudo, na média nacional, três em cada 10 famílias, diariamente, enfrentam a incerteza quanto ao acesso a alimentos. O Nordeste ocupa a primeira posição, com 33% da população em situação de insegurança alimentar, seguido pelas regiões Norte, onde essa chaga afeta 28% das pessoas, e o Sudeste, com 16%. O drama tem menor impacto no Centro-Oeste (16%) e no Sul (12%).
Em 2014, o Brasil comemorou a sua exclusão do Mapa Mundial da Fome, produzido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Mas a tendência de erradicação da miséria no país não durou muito. A crise econômica, considerada uma das mais profundas do país, entre 2015 e 2016, interrompeu o avanço. Em 2017, as organizações da sociedade civil identificaram a necessidade de reorganizar o Natal sem Fome, inspiradas no legado do então sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, ativista dos direitos humanos, que concebeu o projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), criado em 1994, foi extinto em janeiro de 2019. O colegiado, com participação paritária entre representantes da sociedade civil e governo federal, orientava as políticas voltadas ao combate à fome e à miséria, em nível nacional. Em seu lugar, ficou um vácuo. Em consequência, não ocorreu nenhum planejamento para dar sequência ao enfrentamento da fome.
A crise sanitária provocada pela covid-19 agravou drasticamente a situação, trazendo de volta as muitas mazelas sociais e econômicas, resultantes da ausência de políticas públicas eficazes para erradicá-las. Com a redução das atividades produtivas, entre 2020 e 2021, o desemprego aumentou, a renda per capita e familiar foi reduzida, e a fome e a miséria explodiram, chegando ao índice recorde, identificado pela Rede Penssan.
As medidas compensatórias, como o Auxílio Emergencial, aliviaram a crise, mas sequer passaram próximas de uma solução duradoura, assim como o Auxílio Brasil, com duração prevista até dezembro próximo, está longe de garantir a superação dos danos dessa calamidade. Para tornar pior o que era muito ruim, a inflação voltou a crescer e não consegue ser contida, apesar de todos os esforços do Banco Central. Resultado: o poder de compra das famílias está em queda vertiginosa, prejudicando, sobretudo, a aquisição de alimentos.
Vencer a batalha contra a fome e a miséria é um dos muitos desafios do atual e do próximo governo. A calamidade exige do Estado medidas urgentes contra o que pode ser considerado um descalabro. Em um país exaltado pela sua vocação de produzir alimentos, grande parte exportada para alimentar outros povos, revela-se inconcebível que quase um quarto da população se encontre em situação famélica.