Por RUTH LIMA — Pedagoga e gerente de Operações de Campo da ONG Visão Mundial
Começo este artigo com um dado alarmante. Nos quatro primeiros meses do ano passado, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) — órgão federal responsável pelo Disque 100 e 180 — havia registrado 22 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Dessas, exatas 4.088 eram referentes ao abuso e à exploração sexual.
Vale lembrar que aquele ainda era um momento de alta incidência de casos de covid-19, o que se refletia em um cenário de maior isolamento social. Em grande parte do Brasil, por exemplo, escolas estavam fechadas como medida sanitária de controle à pandemia, impedindo que eventuais vítimas pudessem ser acompanhadas e amparadas.
Passado um ano, os números surpreendem. No mesmo período de 2022, o total de denúncias contra crianças e adolescentes registradas pela ONDH aumentou 30,9%, chegando a 30 mil casos, sendo 4.518 referentes a relatos de violência sexual.
A primeira conclusão é óbvia: não estamos conseguindo proteger nossa infância e juventude dos perigos que as rodeiam, notadamente, o abuso e a exploração sexual. Os números da Ouvidoria significam que, a cada duas horas, três crianças são violentadas sexualmente no Brasil.
E isso porque estamos considerando apenas os dados oficiais — quando sabemos, na realidade, que a subnotificação é bastante elevada. Pesquisas de vários autores mostravam que somente 10% desse tipo de violação são comunicados aos órgãos de defesa.
A subnotificação acontece, em grande parte, porque os crimes são cometidos, na maioria das vezes, dentro da própria casa onde a criança ou o adolescente vive. Portanto, se dá sob a ótica da cultura e do pacto de silêncio estabelecido pelo agressor com a vítima — e comumente estendido à família.
A segunda conclusão é menos óbvia, mas igualmente preocupante. Conforme a pandemia se arrefece no país e as normalidades sociais voltam ao que eram antes, com crianças e adolescentes podendo ser vistos e acompanhados com maior frequência e de maneira presencial em espaços de acolhimento, como as escolas, poderemos ter, ao longo de 2022, um aumento das estatísticas para patamares inéditos — resultado de um percentual maior de notificações.
Mas nem tudo é notícia ruim. Afinal de contas, números alarmantes nos forçam a tomar decisões urgentes. O grande aumento na quantidade de denúncias — especialmente quando considerados todos os tipos de violência contra crianças e adolescentes — é também um sinal de que estamos avançando no sentido de trazer essa questão à luz. Reduzir a subnotificação implica, necessariamente, lidarmos com o crescimento nos registros oficiais. E isso só será possível quanto maior for o conhecimento e sensibilização por parte das pessoas em relação ao tema.
O abuso e a exploração sexual infantil, infelizmente, têm várias facetas em nosso tecido social. Uma delas, mais aprofundada e enraizada, é o trauma físico e emocional que é gerado sobre suas vítimas, não raramente comprometendo a capacidade de criar conexões humanas e se relacionar em sociedade, mesmo depois de adultas.
Outra manifestação dessa violência pode ser observada na naturalização do matrimônio infantil e da gravidez precoce. Geralmente, eles são resultado de práticas de violência sexual cometidas contra crianças e adolescentes, muitas vezes por adultos e, particularmente, em regiões rurais e periféricas. Contudo, por causas culturais que precisam ser desconstruídas, acabam sendo aceitos no Brasil, principalmente quando as vítimas têm 14 anos ou mais, apesar de crianças em faixas etárias menores também integrarem as estatísticas.
Por isso, aproveitando que este é um ano eleitoral, devemos lembrar nossos futuros governantes e legisladores de que aqueles que não votam também devem ser ouvidos. Existe, hoje, um amplo arcabouço legal para proteger as crianças e adolescentes brasileiros, mas pecamos ainda na garantia desses direitos.
Todo tipo de violência contra a infância e a juventude, principalmente a sexual, é crime e, como tal, tem de ser denunciada. Mais do que isso, porém, tais casos precisam ser também devidamente investigados, tratados e encaminhados, de modo que as vítimas não permaneçam sob nenhuma condição de sofrimento que implique de maneira negativa o seu crescimento ou as leve a óbito. Precisamos agir na transformação da sociedade em um lugar mais justo.