Por GEORG WINK — Cientista político, é professor de estudos brasileiros na Universidade de Copenhagen
A assim chamada nova direita no Brasil pode comemorar, justamente neste ano, 100 anos de existência. Em 1922 foi fundado, no Rio de Janeiro, o Centro Dom Vital, na época o maior centro intelectual do pensamento reacionário. Seus membros, católicos conservadores e frequentemente monarquistas, formaram no Brasil uma vertente ideológica que providenciou as ideias chave que vêm servindo, desde então, de referência para justificar o combate político a qualquer reformismo social. Essa ideologia tinha um nome que hoje está quase esquecido: integrismo (assim mesmo, não "integralismo").
O integrismo foi uma reação do Vaticano, na segunda metade do século 19, contra todas as relativizações modernas. O antídoto foi a promulgação do neotomismo como única verdade, com base numa reinterpretação dos escritos do frei dominicano Tomás de Aquino (1225-1274) e a escola filosófica inspirada no seu pensamento. O integrismo foi a salvação da igreja católica no Brasil Republicano, órfã da Monarquia, e se tornou o escudo daquelas elites que queriam evitar a qualquer custo que seus privilégios fossem contestados pelo progresso que, desde meados do século 19, vinha modernizando as sociedades na Europa, muitas vezes pela mão de reformadores conservadores.
Eis a minha tese que elaboro no meu livro Brazil, país do passado: as raízes ideológicas da Nova Direita (Bibliotopía, 2021): É impossível entender a direita de hoje sem o integrismo de outrora. Ou seja, a nova direita é, pelo menos no que concerne as suas ideias, de tendência neointegrista. Digo isso plenamente ciente da diversidade dos seus representantes, entre autoritários, conservadores, liberais e fundamentalistas religiosos, acima de tudo (neo)pentecostais. Outros pesquisaram a fundo as diferenças internas desse complexo.
O que eu examinei foram as ideias sobre as quais concordam, embora muitas vezes tacitamente ou até inconscientemente. Esse substrato subjacente de ideias centrais inquestionáveis, consagradas e de certa forma "gratuitas" da nova direita (ou seja, as suas premissas) são de uma resiliência incrível: foram preservadas e reativadas sempre quando do ponto de vista da elite os privilégios herdados pareciam estar ameaçados. Em cada época, surgiram intelectuais orgânicos da classe dominante (no sentido de Gramsci), com amplo alcance público, que estimularam a realização política dessas ideias. Entre eles estão o líder integralista Plínio Salgado, o fundador da TFP Plinio Corrêa de Oliveira, e o nosso ex-contemporâneo Olavo de Carvalho, cuja decisiva contribuição para a ascensão da nova direita foi ter mais uma vez reabilitado o velho ideário integrista e tê-lo "broderizado" por novos meios para toda uma geração.
Quais são as velhas ideias que servem como premissas eternas? Resumidamente, tudo se concentra na ideia da ordem, não por acaso o título da primeira revista do movimento. Uma ordem sublime, de direito natural divino, segundo a tradição. As coisas como elas "sempre foram" e, evidentemente, conforme os dogmas da igreja inerrante. Quem erra são os inimigos dessa ordem, a única possível, porque criticam a perfeição da obra de Deus quando imaginam (nas utopias) ou até planejam (na revolução) "outra" ordem melhor. Esse "progressismo", uma palavra cara à nova direita, é o pecado que condena literalmente todo o pensamento moderno: a começar com a reforma luterana, pelos iluministas e racionalistas e pela revolução francesa, para chegar ao cientificismo e democratismo. Para os integristas era uma só dinâmica, o gnosticismo. Só que passaram a chamá-la de comunismo.
É fundamental entender que, por trás do alarmismo contra marxistas culturais, comunistas verdes, metacapitalistas e outros globalismos, que convence muita gente, há uma ideologia profundamente antimoderna. Não na frente, porque convenceria a muito menos gente afirmar que o status quo da organização social no Brasil (inclusive as gritantes desigualdades sociais e raciais) representaria uma ordem divina e não o resultado de um violento processo histórico, feito por homens colonizadores. Comunismo, no sentido da nova direita, é um fantasma criado para espantar a ousadia de estabelecer um contrato social em substituição da "ordem sublime". No caso do Brasil, com a sua poderosa narrativa de excepcionalismo histórico e vocação nacional, a implementação de um Estado moderno, legitimado pelos seus cidadãos (e não alguma providência divina), parece ser um desafio sui generis.
Há 100 anos, o integrismo veio para dessecularizar o Brasil. Hoje em dia, a nova direita novamente tenta subverter o Estado laico e introduzir posições neointegristas nas políticas públicas, com o bem-vindo apoio de peões evangélicos. Aproveita-se dessa tradição para insinuar uma oposição entre o Estado alienado (tomado e corrompido pelos progressistas) e um Brasil verdadeiro, onde cada macaco fica no seu galho indicado por Deus, na mais perfeita ordem hierárquica. É conveniente para quem herdou uma posição favorável e mais conveniente ainda para a ala neoliberal que fareja nas ruínas do Estado — "desconstruindo muita coisa", como anunciou Jair Bolsonaro — novas oportunidades de negócios.