Por DAVID WILSON DE ABREU PARDO — Doutor e mestre em direito pela UFSC, pós-doutor pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB, é juiz federal em Brasília
O Projeto de Lei 191/2020 (PL 191), de autoria do Executivo, fixa condições para realização da pesquisa e lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas. São atividades que vão causar severos impactos diretos aos povos indígenas.
Apesar disso, a tramitação do PL 191 não tem observado o teor da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que faz parte da legislação em vigor no Brasil. A adoção do regime de urgência na tramitação do PL 191, a partir de março de 2022, acentua esse problema.
É que, conforme a Convenção 169/OIT, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente os povos indígenas, os
governos devem consultá-los, de boa-fé, mediante procedimentos apropriados, através de suas instituições representativas, com objetivo de chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas (art. 6º).
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), de igual modo, prevê que os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem (art. 19).
A consulta prévia, livre e informada (CPLI) assegura que os povos indígenas, vítimas de violência e discriminação ao longo do tempo, sejam incluídos na tomada de decisões e participem da divisão de benefícios das atividades. Toda vez que puderem ser afetados direitos e interesses dos povos indígenas de modo direto, imediato, seja social, cultural, espiritual ou economicamente, a consulta prévia deve ser realizada, mesmo que a medida almejada seja uma lei, como resultará da aprovação do PL 191.
O projeto até aborda o que chama de "oitiva" das comunidades indígenas afetadas. Claramente não se trata da CPLI. A oitiva servirá apenas para "explicar e divulgar os objetivos do empreendimento" (art. 10), com publicação do resultado em relatório (art. 12). E o presidente da República poderá pedir autorização ao Congresso Nacional para realizar as atividades, mesmo com manifestação contrária das comunidades (art. 14).
O próprio PL 191 diz que a oitiva não se confunde com outros procedimentos de consulta eventualmente exigíveis pela legislação (art. 13). Uma cláusula que pode ter sido pensada para excluir as atividades de que trata o projeto do alcance de outras leis, como a Convenção OIT/169. A oitiva seria suficiente, sem necessidade da CPLI.
Há nisso um erro. A CPLI é exigível pela legislação em vigor (OIT/169), inclusive para adotar medida legislativa. E a aprovação do PL 191, por si só, impactará específica e diretamente povos indígenas, de um modo que projetos de lei em geral não o fazem.
Primeiro, por fixar condições para atividades que, como a mineração, acarretam pesados ônus e restrições aos direitos dos povos indígenas de decidirem as prioridades de seu processo de desenvolvimento e de preservarem sua cultura e a relação especial e coletiva com o território. Esses são direitos garantidos pela Constituição.
Segundo, por regular como a oitiva dos povos indígenas será realizada, sem que haja qualquer conversação a respeito. É um enorme contrassenso dispor legalmente sobre uma forma de consulta, conquanto rudimentar, sem observar a exigência legal da consulta prévia. É preciso fazer a consulta da consulta. Do contrário, lei importante sobre uma forma de consultar, ainda que incipiente, vai resultar de uma não consulta.
Longe de constituir paradoxo insolúvel, essa é uma obrigação que deve e pode ser cumprida. O Poder Executivo tem noção de como propor algum diálogo, como indica no PL 191. Por sua vez, várias comunidades indígenas no Brasil já adotaram protocolos próprios de consulta. Na medida em que o PL 191 atinge direitos e interesses dos povos indígenas em todo o país, suas entidades representativas em nível nacional poderiam ser as participantes do diálogo. Enfim, o estágio atual sugere a possibilidade de construção conjunta e de realização de uma CPLI, antes da votação do PL 191.
Negar a consulta prévia sobre o PL 191 pode sinalizar que as suas diretivas, quanto a pelo menos escutar comunidades indígenas afetadas pelas atividades, não são para valer. O contrário é bem verdadeiro: a consulta da consulta demonstraria que a previsão de oitivas das comunidades indígenas afetadas decorre da compreensão do poder público de haver um importante direito em jogo, que merece ser respeitado. Inclusive para definir em conjunto diretrizes para consultas futuras sobre atividades específicas.
Enfim, o direito em jogo só pode ser o da consulta prévia, livre e informada, que protege os povos indígenas e suas culturas distintas. Observar esse direito é passar a trilhar uma história de inclusão dos povos indígenas no processo democrático constitucional.
Saiba Mais
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.