MARCELO COUTINHO - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Só alguém que não sabe o que é escravidão de verdade, ou, simplesmente, não passou dias com uma terrível dor de dente poderia dizer que o mundo piorou nos últimos 50, 100 ou 200 anos. Pode-se debater sobre um tudo, e até mesmo relativizar situações históricas. Porém, um açoite público no pelourinho e vários dentes arrancados sem anestesia são coisas bastante objetivas e indiscutivelmente terríveis em qualquer tempo.
Nos últimos dois séculos, o mundo mudou para melhor. A existência humana hoje é infinitamente superior sem escravidão, sem navios negreiros, troncos ou lugares atrás no ônibus; com medicamentos, vacinas, com as mulheres podendo votar, trabalhar e chamar a polícia contra homens violentos, com gays fazendo passeatas livremente, com políticas de assistência, com escolas para todos, alfabetização, Sistema Único de Saúde (SUS), parques, saneamento básico, um simples banheiro e tantas outras coisas trazidas pelo progresso social e científico.
Evidentemente, existem lugares no mundo em que esses avanços não aconteceram todos. Mas em grande parte do planeta, sim, inclusive no Brasil muitos deles. Também é claro que há muito ainda a ser feito. A história não acabou. No entanto, as lutas do presente e do futuro não enfraquecem em nada a verdade sobre os avanços do passado. Ao contrário. Os avanços devem servir como inspiração para continuarmos progredindo e, principalmente, evitando recaídas ou retrocessos, muitos deles liderados até mesmo por pessoas com uma suposta boa vontade.
Ser crítico não significa ser negativo. Ser crítico requer reconhecer as mudanças do mundo para melhor, sobretudo se você tem mais de 30 ou 40 anos de idade, pois, provavelmente, já teria morrido séculos atrás. As pessoas no século 21 vivem duas ou três vezes mais do que no século 19, e com bem mais qualidade. Expectativa de vida, e vidas múltiplas. Nunca em outra época as pessoas puderam ser mais elas mesmas e tantas outras ao mesmo tempo como na atualidade. É como se alguém hoje com 60 anos tivesse tido uma vida a mais do que seus trisavôs. O nome disso é privilégio, e não só de uma elite, mas de uma imensa população mundial hoje.
A fome e a miséria diminuíram muito nos últimos 200 anos. A pobreza também caiu significativamente, assim como as horas que uma pessoa passa sentindo dores físicas (as dores mentais são um novo problema). Por sua vez, nunca houve tantas democracias no planeta quanto agora. Nunca, sequer perto. E nada disso caiu do céu, embora sejam verdadeiras bençãos. Essas mudanças foram trazidas pela globalização capitalista. Sim, os mercados trouxeram isso, ainda mais aqueles conduzidos por Estados reguladores habilidosos, que souberam intervir na hora certa e distribuir de uma maneira mais justa. A desigualdade de renda aumentou, mas porque a riqueza se multiplicou.
Sem o capital não haveria esse progresso. Mas somente o capital também não resolve tudo. A China é o exemplo mais recente de como o capitalismo global pode beneficiar todo um povo. A potência asiática não era nada até 1978. Foram as reformas econômicas em direção ao mercado bem orientadas que fizeram com que os chineses pudessem ter um teto com privada saneada, água encanada, luz, roupas dignas e, sobretudo, refeições diárias. A China sempre passou por terríveis crises de fome em massa, muito antes de existir capitalismo no mundo. Por sinal, uma das piores fomes foi no auge do comunismo chinês nos anos 1960.
Sem capital não tem bolsa família, não tem crianças nas escolas, não tem hospitais públicos, nem celulares, alojamento estudantis, metrôs ou pontes. Mas nada disso significa que o mercado é uma espécie de santo graal da racionalidade. O mercado, frequentemente, é muito irracional. As bolsas de valores dão provas disso toda semana. Tampouco o mercado precisa que todos os agentes sejam privados para gerar desenvolvimento. Os melhores desempenhos nos últimos tempos no Brasil têm sido de empresas e bancos públicos. As universidades no país são outra prova de que o público e federal pode ser muito melhor do que o privado, ainda mais, justamente, em pesquisa científica e desenvolvimento.
Até as guerras que sempre acompanharam a humanidade reduziram muito sua incidência e suas mortes nas últimas décadas quando a globalização se aprofundou. A hiperglobalização trouxe uma era de relativa paz, ainda que não perpétua. E tudo pode mudar. A guerra na Ucrânia é prova disso. De repente, lá estamos nós de novo às voltas com uma ameaça da terceira guerra mundial. Nem todos os avanços obtidos são suficientes para garantir um futuro melhor. Guerra, pandemia e fome reocupam a agenda global. O capitalismo também agravou problemas, como o aquecimento do planeta e a violência urbana. Nem tudo de bom veio junto, como imaginava a teoria da modernização de 70 anos atrás.
Em que pese os desafios que a humanidade tem pela frente, é preciso consciência do quanto já progredimos na civilização. Estamos às portas de uma nova grande crise financeira global. Essas crises cíclicas aumentaram sua frequência na globalização e se tornaram mais devastadoras. Uma decisão errada, e podemos colocar tudo a perder. O mercado e a democracia foram as instituições pelas quais superamos atrasos seculares. Porém, o mercado não pode ser deixado por ele mesmo. É preciso intervenções pontuais para corrigir suas distorções. Nada contra os bilionários. Muitos deles fizeram por merecer. Mas, evidentemente, devemos produzir uma nova engenharia social que diminua tanta desigualdade que as tecnologias disruptivas podem agora tornar insustentáveis.
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