Por Nelson Mussolini - presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) e membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS)
Situações complexas não têm soluções simplistas. Por trás do bom senso e do pragmatismo que aparenta, a proposta de usar medicamentos para indicações terapêuticas não aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Sistema Único de Saúde (SUS) esconde alguns sérios problemas legais, sanitários e éticos. A Lei 14.313, de 2022, que dispõe sobre os processos de incorporação de tecnologias ao SUS e sobre a utilização pelo sistema público "de medicamentos cuja indicação de uso seja distinta daquela aprovada no registro da Anvisa", é um verdadeiro atentado contra o SUS, a Anvisa e, por consequência, a saúde pública.
Para ser usado em larga escala, um medicamento precisa, no Brasil e no mundo, ser testado exaustivamente em pesquisas clínicas que comprovem sua segurança, eficácia e qualidade para os tratamentos terapêuticos indicados. Aprovados esses estudos, que não raro são extremamente dispendiosos, o produto recebe o registro solicitado pela indústria farmacêutica que o desenvolveu e pode ser oferecido para a população, para uso de acordo com as indicações descritas na bula.
É nesse contexto que se inserem os medicamentos oferecidos pelo SUS. São produtos de consumo amplo, que precisam, obrigatoriamente, seguir as diretrizes gerais de uso previstas nas bulas aprovadas pela Anvisa. Contrariando esse princípio, a indicação terapêutica off label, aquela que não consta da bula aprovada pelo órgão regulador, é sempre restrita e determinada. Portanto, criar no SUS uma regra que permite o uso de medicamentos para doenças não aprovadas no registro do produto na Anvisa representa um grave ameaça à saúde coletiva.
Quando, após as extensas fases da pesquisa clínica, as indústrias farmacêuticas obtêm a aprovação de um medicamento e o lançam no mercado, o passo seguinte é acompanhar, permanentemente, o uso desse produto pelo consumidor, para confirmar a segurança, eficácia e qualidade originais. Esse processo é chamado de farmacovigilância e envolve uma grande rede de centros e profissionais e investimentos de milhões de reais por ano para monitorar a correta aplicação dos produtos e os relatos de efeitos colaterais; e, em casos graves, suspender a distribuição para proteger a população, como já aconteceu no passado.
Adotada a regra de permitir que o SUS ofereça medicamentos com indicação de uso não aprovado pela Anvisa, quem ficaria responsável pelo acompanhamento do uso off label dos produtos? Há, ainda, a questão da responsabilidade legal. Quem seria responsabilizado pelo uso de um medicamento off label no SUS em caso de evento adverso grave? Seriam os técnicos do SUS que aprovaram seu uso off label? Por óbvio, o desenvolvedor do medicamento não pode ser responsabilizado, pois a empresa obteve aprovação somente para as indicações terapêuticas que constam do dossiê de registro e das bulas e sempre alerta que o produto deve ser utilizado apenas de acordo com o registro sanitário e a orientação médica.
Por fim, é preciso considerar o quanto a indicação de uso off label de medicamentos no SUS afronta a prática médica e fragiliza o atendimento aos pacientes. Quando um médico decide indicar para seu cliente um medicamento não aprovado formalmente pela Anvisa para o tratamento que está prescrevendo, procede de acordo com sua convicção, experiência clínica, a ética médica, em situações particulares e com base na etiologia da doença, com pleno conhecimento das condições de saúde do paciente.
Essa é uma competência exclusiva do médico, que não se aplica ao Estado e suas instituições, nem pode ser contemplada por uma regra genérica e irrestrita. Destaque-se que a indústria farmacêutica não deseja que seus produtos sejam dispensados de qualquer maneira. A ética seguida pelas empresas é a de que esses produtos sejam utilizados de acordo com as regras da Anvisa.
A pandemia do Sars-CoV-2, que ainda estamos enfrentando, provou a competência e relevância do nosso Sistema Único de Saúde e da Anvisa, que, por critérios técnicos, fundados na ciência, orientaram a população sobre o que poderia ou não ser usado no combate da covid-19.
E mesmo que as referidas barreiras éticas, sanitárias e legais fossem vencidas, essa lei só faria algum sentido se o uso off label fosse adotado para doenças que não tenham medicamentos registrados na Anvisa e depois de amplo debate com a sociedade. Havendo solução terapêutica devidamente aprovada pelo órgão regulador, não há motivo plausível para colocar em risco, ainda que mínimo, os usuários do SUS e a saúde pública.
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