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Análise: Senta-se à beira do caminho quem jamais se sentou à mesa

O que estamos vivenciando hoje, os altíssimos preços de alimentos e de todos os bens materiais necessários para a manutenção da vida cotidiana dos milhões de brasileiros trabalhadores, desempregados, subempregados, aposentados, de toda e qualquer forma milhões de seres humanos submetidos à dinâmica de exploração do seu trabalho e de expropriação de sua renda socialmente produzida não tem causas naturais

Correio Braziliense
postado em 13/06/2022 06:00
 (crédito:  AFP)
(crédito: AFP)

CINTIA NEVES GODOI - Doutora em geografia

SANDRO LUIZ BAZZANELLA - Doutor em ciências humanas

Os processos históricos de construção da sociedade, da economia em suas prerrogativas locais, regionais, nacionais e até em escala global bem como da democracia, dos Estados-nações, se apresentam como processos não naturais, resultantes da ação humana. No entanto, as disputas de poder parecem permear essas relações em grandes escalas, como também em escalas individuais e de pequenos grupos. Nessa direção, é preciso considerar o filósofo francês Michel Foucault (1924-19984), pois o poder não reside na pessoa do governante, ou das instituições, é resultante de relações de poder que se estabelecem, se ramificam, transitam entre indivíduos, grupos sociais, instituições.

O que estamos vivenciando hoje, os altíssimos preços de alimentos e de todos os bens materiais necessários para a manutenção da vida cotidiana dos milhões de brasileiros trabalhadores, desempregados, subempregados, aposentados, de toda e qualquer forma milhões de seres humanos submetidos à dinâmica de exploração do seu trabalho e de expropriação de sua renda socialmente produzida não tem causas naturais.

A guerra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra a Rússia, em território ucraniano, envolvendo povos e lideranças de ambos os países é uma das guerras, um dos conflitos em vigor, envolvendo nações ricas, numa disputa pela manutenção da liderança geopolítica mundial, com reflexos diretos em diversos países. Nesse contexto, nossas dores cotidianas têm a ver com alternância de poder geopolítico em suas pretensões hegemônicas em fase quente, em fase de conflito, de guerra, de morte.

Mas nossas dores cotidianas têm também, em grande medida, a ver com nossa posição política ante a nossa própria sociedade, o jogo com Estados-nações hegemônicos e diretamente frente a nossa posição em relação ao poder econômico-financeiro global.

Os ventos do norte não movem moinhos. Neste texto e contexto, estamos a ponto de não conseguir fazer uma compra de alimentos semanal sem sofrer com o valor que alcançará. Boa parte talvez nem isso mais consiga fazer. A agressividade do regime de acumulação de capital alcança tal condição de que fazemos piadas entre nós sobre o preço da cenoura, para tentar esconder o receio de chegar ao final do mês sem dinheiro. Ao ponto de olharmos ansiosos no calendário para contar quantos dias temos até o final do mês, fazendo contas, para ver se o dinheiro de que dispomos será o suficiente até o próximo vencimento.

Ocorre que o trabalho executado aqui, por nós, é o mesmo executado por pessoas em países mais ricos, por exemplo. Por que passamos por isso? Todos os meses? Por que não voltamos a viver como há 10 anos? Ainda está fresco em nossa memória que nem sempre foi assim. Que há 10, 20 anos estávamos conseguindo mais, consumir mais e acessar um mundo de condições minimamente dignas de vida, em viagens mesmo que para visitar parentes e amigos nas cidades, ou estados vizinhos, em acesso à educação, cursos, em encontros, em três refeições ao longo do dia para a maioria da população, e pensamos que seria possível. O voo do Brasil sexta potência. Nós nos sentamos à mesa? Ouvimos que tínhamos "o cara" como presidente.

Golpes, alternâncias de grupos no poder não deveriam ser assim tão destrutivos com as possibilidades de vida da população brasileira, onde estão as instituições? As instituições apresentadas pela modernidade, portanto, parecem dar conta da segurança cotidiana de garantir massas em marcha, organizadas, mas não parecem dar conta da segurança de vida à sociedade, às mais de 660 mil vidas perdidas no Brasil em função da pandemia. Como foi conduzido o processo de cuidar da sociedade na pandemia, ou como não foi conduzido? Questionar isso expõe que o braço forte, mão amiga, garantiu nossa subserviência, mas não vida.

Por isso, fica difícil pensar que a sexta potência era um voo, talvez um salto, "um salto no futuro, um disparo para o coração". Nessa linguagem de músicas de jovens adultos, pessoas velhas, coisas que não se cantam mais, tentamos nos fazer entender, compartilhar inseguranças e indignação, pois precisamos acabar logo com isso, precisamos nos lembrar que existimos. Nós existimos! Nós existimos!

 

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