OPINIÃO

Artigo: "Deixem a história em paz"

Correio Braziliense
postado em 05/06/2022 07:00

Por JAIME PINSKY - Historiador

Se as lições da História fossem claras, Solano Lopez não seria considerado herói no Paraguai e bandido no Brasil e o Duque de Caxias não seria cultuado no Brasil e considerado um carrasco sanguinário no país vizinho. Ouço, em conversas informais, médicos, advogados, economistas e administradores de sucesso me informando (consolando?) que pensaram em estudar História, admiram muito os historiadores e gostam das lições que ensinam. Sinto decepcioná-los, meus caros, mas história não é para amadores. Na verdade, a maioria nem sequer tem ideia do que é História, embora todos se sintam no direito (obrigação?) de palpitar sobre o assunto, e até de exigir a troca de professores em muitas escolas.

Mas vamos por partes. Sim, senhores, História é uma área de conhecimento que nos toca profunda e diretamente, não é aquela coisa idiota e decorativa (nos dois sentidos) ensinada em meados do século passado no Brasil e em muitas escolas de primeiro mundo até hoje. Basta examinar livros didáticos, supostamente de História, em escolas públicas nos EUA: não passam de compêndios parecidos com listas dos infindáveis presidentes americanos e alguns cidadãos de destaque, algo sobre suas vidas, outro tanto sobre suas obras e poucas e até nenhuma palavra sobre as sociedades em que atuaram, a condição das minorias, a democracia na prática (não só a democracia formal), o papel das mulheres, a vida dos indígenas, dos negros, dos imigrantes e assim por diante.

História não é a narrativa, ou uma narrativa, nem qualquer narrativa sobre coisas que aconteceram. História implica se apropriar do passado a partir do presente. Se um estudioso de qualquer época e de qualquer tema do passado decide pesquisar algum fato que tenha acontecido ele vai, obrigatoriamente, olhar esse passado a partir do seu presente. E seu presente, o ponto de vista a partir do qual ele se dá conta daquilo que aconteceu, será, hoje, diferente do ponto de vista de alguém que estudou esse passado há, por exemplo, um século. Um elefante será sempre um elefante, mas se o ponto de vista levar o observador a conhecer o elefante pela frente, ele poderá ver uma tromba enorme, mas se o enxergar por trás verá apenas um rabinho. Deixando a zoologia de lado, é evidente que não se pode deixar de considerar a historicidade do próprio historiador.

Uma historiadora que se debruce hoje sobre a história das mulheres no período colonial brasileiro será levada a fazer investigações que outra, vivendo um século atrás, não terá feito. O comportamento, a prática social, a relação que as mulheres têm com o próprio corpo, a moral sexual, os objetivos profissionais, até mesmo seus anseios e sonhos têm a ver com sua realidade econômica, política, religiosa. Mulheres da Arábia Saudita só receberam autorização para dirigir veículos há poucos anos e isso, seguramente, pode parecer revolucionário para moradoras de países vizinhos, algumas ainda sujeitas a imposições machistas vestidas de dogmas de fé.

Mas a coisa toda parecerá um arcaísmo insuportável em sociedades que superaram esse dilema há muitas décadas. O historiador precisa ter sensibilidade e conhecimento empírico e teórico para pesquisar, entender e apresentar a questão. História não é para amadores. Uma questão precisa ficar clara: História não tem partido, não é de esquerda, nem de direita. Quem trabalha com ela precisa utilizar todas as técnicas que aprendeu, na faculdade ou fora dela, para não confundir a atividade docente com um espaço de pregação política. Seu compromisso, como docente, é com o conhecimento histórico estabelecido a partir de pesquisas feitas por gente séria.

Hoje, temos centenas de cursos de história no país, com gente boa se formando em muitos lugares. Temos também livros sérios que apresentam questões fundamentais da história com linguagem acessível a professores e alunos. Buscar obras de qualidade para ter bons pontos de partida é uma atitude necessária para não transformar a sala de aula em campo de batalha, ou palanque político. Por outro lado, cabe aos dirigentes educacionais oferecer suporte aos seus docentes. Tenho visto um movimento inaceitável de pais de alunos querendo interferir em programas de curso, em abordagens de temas sensíveis, chegando até a instrumentalizar seus filhos para questionarem de modo grosseiro os professores quando estes não apresentam abordagem histórica que os interessa.

Ler para os filhos, ler com os filhos, ler para dar exemplo aos filhos é, sem dúvida, uma forma melhor de ajudar o processo educacional do que insurgi-los contra os professores de História. Pedir para que as escolas cuidem mais da iniciação científica de seus alunos, para que o país tenha ainda alguma chance de chegar a um patamar que desejamos, é outra. É só querer ajudar de verdade.

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