ensino superior

Artigo: Gratuidade insuficiente

CRISTOVAM BUARQUE - Professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação

Mais uma vez, a comunidade interessada em educação luta por uma causa correta, mas insuficiente: impedir o fim da gratuidade no ensino superior, e não para que toda criança tenha gratuidade nas escolas de qualidade. Para que os 800 mil alunos das universidades federais não paguem, não para que os 50 milhões de crianças em idade escolar concluam o ensino médio com qualidade, em escolas gratuitas. Aceita-se que isso seja privilégio dos que podem pagar mensalidades elevadas, ou em raras boas escolas públicas, em geral federais.

O debate é se a universidade estatal deve ser pública, não se as escolas de qualidade também devam ser todas públicas. Aceita-se que as boas escolas de educação de base sejam pagas, e que a escola seja desigual, conforme a renda da família da criança. Não se aceita que haja universidade de qualidade paga para os ricos e universidade sem qualidade gratuita para os pobres, mas isso é aceito para a educação de base. Nem ao menos se pergunta "por que cobrar para que crianças tenham acesso às melhores escolas?" Ainda menos "porque haver gratuidade no ensino superior de qualidade, sem direito à gratuidade no ensino fundamental e no ensino médio com qualidade".

Felizmente, há resistências contra a proposta retrógrada de terminar com a gratuidade das universidades, porque seus alunos vão construir o Brasil, mas é lamentável que não se lute pela garantia de escola pública de qualidade para todos. A gratuidade é defendida apenas para depois de o aluno passar no vestibular, sabendo-se que essa seleção excluiu, antes mesmo de ser feita, milhões que foram sendo deixados para trás, antes do final do ensino médio, com razoável qualidade.

Os que ficaram fora da educação de base com qualidade, porque elas são pagas, não se beneficiarão da gratuidade nas universidades estatais. Porque não concluíram o ensino médio com qualidade. Não tiveram acesso às escolas com qualidade, pagas e caras; por isso, não conseguirão estudar em algum dos cursos mais demandados das boas universidades estatais. Se conseguem, dificilmente concluirão esses cursos, por falta de base. Alguns reacionários usam essa realidade como argumento para acabar com a gratuidade nas universidades estatais, fazer a educação de qualidade ser paga do ensino fundamental ao superior; enquanto que outros reacionários defendem a gratuidade para quem chega ao ensino superior, mas mantendo pagas as escolas de qualidade ao longo da educação de base.

Da base ao ensino superior, a educação é a fábrica do futuro do país. A nação que desejar ter progresso econômico e social não pode desperdiçar o potencial de nenhum de seus cérebros, não pode,  por isso, permitir que o talento de qualquer deles seja inibido por não poder pagar uma escola com máxima qualidade. O Brasil teria perdido milhões de grandes jogadores de futebol se limitasse o acesso à bola apenas aos meninos cujos pais pudessem pagar caro para jogar; ou se aceitasse bolas redondas para alguns e quadradas para outros. É isso que fazemos com o conhecimento.

O Brasil precisa garantir a mesma qualidade em todas as nossas escolas, e assegurar acesso a elas, independentemente da renda e do endereço de cada criança. Sem isso, a gratuidade das universidades fica insuficiente, ineficiente e injusta. Além da injustiça do tratamento diferenciado entre educação de base e ensino superior, a gratuidade pode trazer ineficiência, dependendo do propósito a que serve o curso. Toda gratuidade é paga por alguém: seja o aluno, seja o público.

À Justiça, exige perguntar-se quem financia e quem se beneficia. A formação de base da população é uma necessidade da sociedade, por isso, é justo que seja paga pelo poder público. Na universidade há cursos que atendem às necessidades da sociedade e do país e cursos que servem apenas à ascensão pessoal do aluno. Os primeiros cursos justificam serem pagos pela sociedade, mesmo se os alunos vêm de classes privilegiadas, os outros cursos não justificam, mesmo que os alunos venham de classes com baixa renda. A universidade pública deve ser gratuita para os alunos, quando ela for pública nos propósitos de seus cursos. A escola de base deve ser gratuita sempre, porque seu produto é social. Apesar disso, a luta atual está sendo pela gratuidade do ensino superior para todos e não pela gratuidade da educação de base para todos.

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