As autocracias, eufemismo para a incômoda palavra "ditadura", não nascem apenas de uma conjugação perigosa de erros, omissões e oportunismos. São, também, expressão de uma parcela expressiva da sociedade, que não cabe agora discutir se está sendo induzida ou enganada, se é pouco esclarecida ou reacionária. Grupos de interesse também ajudam na corrosão do tecido democrático, quase todos senhores de um discurso crítico às mazelas econômicas e políticas do país — naturalmente que as soluções para o bem-estar geral e o fim "de tudo isso que está aí" passam pelas ideias que divulgam.
A imprensa é igualmente responsável pela ascensão das ditaduras, não por ser a incômoda mensageira dos dramas nacionais, mas por posições dúbias — e, muitas vezes, tíbias — diante dos projetos autoritários. Nem sempre os veículos de comunicação entendem o papel que desempenham e alijam parcelas expressivas da população das discussões necessárias, oferecendo a elas figuras e fatos irrelevantes como se importantes fossem. É o "circo" do clique, da audiência, ocupando o lugar do "pão".
Também não existe autocrata, ou ditador, burro. Pode ser monótono, não manejar a oratória, mas sabe exatamente o que quer e como mobilizar apoiadores. Utiliza uma linguagem pobre e, por isso, compreensível. As exemplificações que dá habitualmente são grosseiras, mas acertam seu público no coração. Sugere soluções simples e estúpidas para questões complexas — fórmulas fáceis para preguiçosos. É sempre mentiroso e manipulador, e conta com um grupo de áulicos que não vê nenhuma imoralidade quando a falsidade têm, segundo a visão deles, os mais "altos" objetivos.
Uns ditadores têm empatia, outros nenhuma, mas inspiram uma autoridade, uma virilidade e uma decência que somente os cegos enxergam. E os cegos podem ser milhões. Curiosamente, os democratas são, também, responsáveis pelo surgimento das ditaduras por jamais acreditarem em momento ou em espaço para que voltem. Têm a ingenuidade de achar que, depois de um bom tempo de democracia, um regime de força perde condições de se instalar. Não trabalham nunca com a hipótese de que retrocessos existam — e, pior, não percebem que há pessoas que defendem isso. Não acham que a sociedade seja essencialmente má, egoísta ou deseducada. Para os democratas, tais características são sempre circunstanciais.
Em um artigo sobre a pandemia, a professora Marialva Barbosa, da Escola de Comunicação da UFRJ, trouxe a interpretação de Herbert Marcuse para a frase de Karl Marx — "a história se repete como tragédia ou farsa". Segundo o sociólogo alemão/norte-americano, "os fatos e personagens da história mundial que ocorrem, por assim dizer, duas vezes, na segunda, não ocorrem mais como farsa. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue". Permitam-me discordar. Por enquanto, o projeto de uma nova ditadura é pantomima, mas pode virar barbárie.