SAÚDE

Artigo: 'Ameaça na ponta da agulha'

Por IRENE ABRAMOVICH - Neuropediatra, é presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp)

ELIANE ABOUD - Cardiologista, acupunturista e conselheira do Cremesp

NAILA NUCCIH - Advogada do Departamento Jurídico do Cremesp

Há anos, a acupuntura tem oferecido alívio e melhor qualidade de vida para muitas pessoas. Técnica milenar, com berço na medicina chinesa, consiste na aplicação de estímulos por pontos específicos do corpo, por meio de agulhas. Vale lembrar que, na China, somente médicos podem exercer a acupuntura. Aparentemente inofensiva, a aplicação, minimamente invasiva, demanda amplo conhecimento profissional para que os resultados esperados sejam alcançados, além de evitar possíveis complicações. Isso porque os estímulos atuam em terminações nervosas do nosso organismo e o ponto de contato ativado também pode estar próximo a vasos sanguíneos e vísceras, por exemplo.

Esses são alguns dos motivos pelos quais, em 1995, no Brasil, a acupuntura foi reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Infelizmente, não foi o que entendeu o Superior Tribunal de Justiça (STF), em fevereiro deste ano. Para a Corte, é admitida a prática de acupuntura por enfermeiros, em resposta ao Recurso Especial do CFM, solicitando ao TRF1 que reconsiderasse a sentença proferida em 2018 sobre a realização da atividade por esses profissionais.

Para o desembargador Manoel Erhardt, que reconheceu a legalidade da prática da acupuntura por enfermeiros, limitar essa atividade milenar ao exercício exclusivo dos profissionais da ciência médica ocidental, além de construir uma sobrequalificação para o exercício desta técnica, conduzirá inelutavelmente à restrição do direito de toda a população à saúde em sentido amplo.

Contudo, de se sobrepor ao direito à saúde e concorrendo com ele, o fato que não há como ignorar é que permitir que profissionais não habilitados atuem como acupunturistas pode acarretar em risco à população que se quer proteger. A expertise para essa prática milenar, se não bem adquirida e formatada por profissionais que dominem a complexidade do corpo humano, pode colocar em risco a saúde do paciente. Um protocolo mal aplicado pode, além de não oferecer resultados, acarretar complicações das mais variadas, de hematomas e hemorragias a lesões traumáticas de tecidos e órgãos. Nesses casos, quem cuidaria das complicações, os enfermeiros? Além disso, como garantir a qualificação de não médicos para praticar legalmente um ato reconhecido como especialidade médica? Como assegurar a regularidades e condições dos consultórios?

As complicações na acupuntura decorrentes de tratamentos ineficazes, sem um profissional que saiba fazer o diagnóstico preciso, podem acarretar diversos prejuízos ao paciente. Além de mascarar a doença, perde-se um tempo muitas vezes precioso, necessário e decisivo para a cura. Diante disso, é fácil compreender que legalizar atos privativos aos médicos para não médicos não garante o amplo direito à saúde para a população. Pelo contrário, reduz drasticamente a qualidade no atendimento, amplia os riscos e onera médicos e judiciário em ações para solucionar possíveis danos causados aos pacientes. Sem contar os casos em que uma aplicação incorreta pode gerar danos irreversíveis ao indivíduo.

A decisão do STJ é preocupante, pois dá margem para que outras categorias profissionais pleiteiem a mesma autorização, sem terem o preparo necessário, e com os mesmos argumentos não convincentes. Ao passo que os resultados na prática são desastrosos em procedimentos realizados por não médicos. A situação vivenciada hoje pela medicina é muito grave. Diariamente, tomamos conhecimento de casos de falsos médicos ou profissionais não médicos que insistem em praticar atos privativos dos profissionais da medicina. É preciso mudar esse cenário e um caminho possível, certamente, é o diálogo entre as comunidades médica e jurídica, para que haja entendimento claro sobre o papel da medicina em tomadas de decisões jurídicas mais assertivas. Essa seria, sem dúvida, uma forma mais segura de defender o amplo direito de toda população a um atendimento de saúde com qualidade, respeitando a Lei do Ato Médico e a valorização do título de especialista.

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