Rafael Barretto - Professor de direito constitucional, direito eleitoral e direitos humanos. Escritor. Mestre em direito público. Ex-conselheiro da OAB/BA
O episódio da graça concedida pelo presidente da República ao deputado federal Daniel Silveira, um dia após a condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tem suscitado diversas questões jurídicas e opiniões bastante divergentes. Pondero que muitas das questões não têm uma resposta precisa, pois nem a Constituição, nem a legislação infraconstitucional têm preceito expresso sobre o objeto de alguns questionamentos. A solução, portanto, passa por construções interpretativas, e, em razão disso, têm surgido opiniões tão divergentes.
A interpretação, entretanto, deve ater-se aos aspectos jurídicos, isenta de opiniões políticas, bem como de valorações a partir dos personagens envolvidos no caso concreto. Interpretação jurídica, decerto, não pode variar "conforme a capa do processo".
A graça é um instituto jurídico inserido no denominado poder de clemência do chefe do Executivo. Enquanto agente da soberania estatal, ele pode "perdoar" indivíduos condenados pela prática de crimes. É um Instituto que tem raízes na Antiguidade, passa pelo Direito Romano, e está consolidado nos mais diversos Estados Constitucionais, integrando o modelo de independência e harmonia entre os Poderes, como um mecanismo de freios e contrapesos.
Originariamente, atrelado às monarquias, o instituto é acolhido como elemento integrante das Repúblicas presidencialistas a partir da experiência americana, especialmente com a formulação teórica feita por Madison no artigo 74 dos Federalist Papers.
Nos Estados Unidos, o poder de perdão presidencial foi utilizado por praticamente todos os presidentes, desde George Washington até Joe Biden. Por lá, a tradição é a concessão do perdão individual, e não do perdão coletivo, como costuma ocorrer no Brasil. Em alguns casos, o perdão foi concedido a pessoas próximas ao presidente. Foi o que aconteceu com Donald Trump, que perdoou seu coordenador de campanha, e com Bill Clinton, que perdoou seu irmão, que fora condenado por envolvimento com drogas, e esse perdão foi concedido no último dia do mandato presidencial! Em todas as situações, ainda que os episódios rendessem críticas, não se cogitou a invalidação do ato presidencial, por se reconhecer estar diante de uma competência constitucional do chefe do Poder Executivo, que integra o desenho institucional dos freios e contrapesos.
No Brasil, o poder de graça do chefe do Executivo foi previsto em todas as Constituições, inclusive na do Império. O instituto foi utilizado inúmeras vezes, por diversos presidentes. Nossa tradição é a concessão do perdão coletivo, mas Bolsonaro não foi o primeiro a conceder o perdão individual. O presidente Hermes da Fonseca valeu-se do poder de graça para conceder perdão individual em mais de uma oportunidade, inclusive a um funcionário do Ministério da Guerra. O episódio é analisado por Rui Barbosa, em seus "Comentários à Constituição de 1891", que defende a invalidade de um dos perdões concedidos, porque, para Rui, abrangeu um crime para o qual a Constituição proibiria a graça. Rui não questionava ali o poder presidencial, mas o exercício desse poder em relação a uma hipótese constitucionalmente proibida.
Sob a vigência da Constituição de 1988, o primeiro decreto de perdão foi editado por José Sarney, em dezembro daquele ano, poucos mais de dois meses após a entrada em vigor da atual lei constitucional. Foi um perdão coletivo (indulto), que contemplou ações penais ainda em andamento, ou seja, condenações criminais não transitadas em julgado, como feito agora também por Bolsonaro.
Como se percebe, Bolsonaro não "inovou" o mundo jurídico. O que ele fez já foi feito outras tantas vezes na experiência constitucional de muitos países, inclusive do Brasil. Talvez, o que esteja causando tanta perplexidade no episódio, é o contexto em que se deu, mas por fatores extrajurídicos, que não podem condicionar a interpretação constitucional do caso.
No desenho institucional dos freios e contrapesos, nem sempre cabe ao Poder Judiciário proferir a "última palavra" sobre uma questão constitucional. É o que ocorre, por exemplo, com o processo de impeachment de presidente da República, com a extradição e com o veto presidencial a projeto de lei. Por vezes, até em questões nas quais o Poder Judiciário tem a palavra definitiva, como ocorre na declaração de inconstitucionalidade da lei, os Poderes Políticos podem reabrir a questão, mediante a prática do backlash.
A priori, não cabe ao Judiciário adentrar no mérito de um ato de graça presidencial. O controle de validade deve ater-se aos limites de proibição constitucional. Não havendo proibição constitucional quanto ao crime perdoado, a graça, se afigura válida, ainda que possa desagradar muita gente. Nesse tema, prevalece o juízo político do chefe do Poder Executivo.
Fico refletindo se haveria tanta polêmica se o presidente Bolsonaro concedesse graça a um indivíduo condenado por praticar um crime contra ele, residente (calúnia, por exemplo). Se a resposta for negativa, é um indicativo de que a interpretação estaria à varia "conforme a capa do processo", o que não pode ocorrer. Gostando ou não do presidente, e do deputado contemplado pela graça, a interpretação jurídica sobre o instituto jurídico tem que ser a mesma.