opinião

Visto, lido e ouvido: Fingindo-se de morta para sobreviver

Circe Cunha (interina)
postado em 28/05/2022 06:00
 (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Credibilidade é todo o capital que uma instituição necessita, tanto para exercer com eficiência seu mister, quanto para ganhar a confiança e a aprovação daqueles que buscam seus serviços. Sem essa qualidade, nada pode ser levado adiante. No caso das instituições públicas, essa é uma virtude fundamental, que, uma vez perdida, dificilmente pode ser recuperada.

O problema com a perda de credibilidade de algumas ou de boa parte das instituições do Estado é que isso não fica restrito apenas no âmbito da avaliação da sociedade, sendo que seus efeitos deletérios acabam se estendendo e ganhando terreno, contaminando toda a máquina pública, prejudicando o cidadão e, por tabela, gerando crises que, de uma forma ou de outra, acabam afetando a qualidade da própria democracia.

Por essa visão fica explícito que democracia e credibilidade são irmãs siamesas. Onde uma está, está também a outra. No caso do Brasil, em particular, esse é talvez um dos maiores problemas a afetar a qualidade do nosso almejado regime político. A população, em geral, não deposita confiança nos homens públicos e na maioria dos que estão à frente das instituições em nosso país. Pesquisas de opinião diversas comprovam a perda de confiança da população não apenas com relação as instituições, mas com relação também aos três Poderes da República.

No ano passado, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha, cerca de 50% dos entrevistados diziam não confiar no desempenho da Presidência da República. A mesma baixíssima avaliação era apontada com relação ao Legislativo e ao Judiciário. Até mesmo o Ministério Público entrou nessa lista, considerado como instituição que goza de pouca ou quase nenhuma confiança por parte dos brasileiros.

Reparem aqui que confiança e credibilidade são sinônimos diretos, sendo que a perda de um ou de outro traz prejuízos incalculáveis para a população, afetando, de modo drástico, a vida de todos, criando um fosso irreparável entre a nação, a quem, segundo o artigo 1º da Constituição, "todo poder emana", e o establishment. É na perda de credibilidade das instituições que está o nascedouro das desigualdades, do qual somos campeões mundiais. "O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco", já afirmava o escritor Machado de Assis, em 1861.

De lá para cá, e no sentido contrário do que induz a evolução e o progresso, esse modelo perverso ganhou ainda mais ímpeto e maiores proporções, ao ponto de hoje estarmos diante de uma situação anômala em que a população se vê forçada a trabalhar, de modo compulsório, para sustentar todo esse edifício em ruínas e sem credibilidade, recebendo em troca as migalhas que caem das mesas fartas.

Não causa espanto que todas as pesquisas de opinião pública acabam por apontar os partidos políticos com os maiores índices de desconfiança ou credibilidade. Em 2021, ainda segundo o Datafolha, 61% dos ouvidos disseram não confiar nas legendas. O Congresso Nacional é visto com descrédito por 49% da população. O Judiciário alcançou, em 2021, 31% de desconfiança dos brasileiros.

Melhor avaliação ficou com as Forças Armadas, que conta com 76% de confiança por parte da população. A questão aqui é saber que nação pode almejar algum futuro ou melhora nos índices de desenvolvimento humano quando seus cidadãos torcem o nariz para suas instituições, porque reconhecem a pouca credibilidade que possuem?

Essa perda paulatina de credibilidade interna provoca estragos também fora do país, forçando o Brasil a ir se afastando de outras nações desenvolvidas do planeta. Sobretudo, no quesito combate à corrupção. A impunidade, que a população reconhece que vigora para as elites, juntamente com os mecanismos que tornam a classe dirigente blindada aos rigores da lei, tem sido um fator a catalisar fortemente a desconfiança da população em suas instituições.

Os ricos e poderosos estão não apenas imunes às leis, como recebem proteção e prioridades nas altas Cortes. Há quase mil dias, repousa nos labirintos infinitos do Congresso o projeto de condenação já em segunda instância, o que coloca nosso país numa posição sui generis perante os 194 países que fazem parte da ONU. Aproveitando essa brecha, que veio a calhar, o Supremo tem livrado da cadeia os maiores corruptos desse país, gente que desviou bilhões de reais e, nem por isso, perdeu seus direitos políticos.

São benefícios a atingir apenas os poderosos, que podem, com o dinheiro que roubaram, pagar os mais caros escritórios de advocacia deste país. O desmanche da Operação Lava-Jato e a colocação de ex-presidiário para disputar o mais alto cargo da administração pública falam por si e traduzem o trabalho hercúleo que as altas Cortes vêm fazendo para tornar a corrupção nas altas esferas crimes eleitorais, de menor importância.

Leis como a Ficha Limpa, que a população chegou a acreditar um dia, que teria vindo para impedir que verdadeiros delinquentes ocupassem cargos públicos, foram estraçalhadas, o mesmo acontecendo com a Lei de Improbidade Administrativa. Na percepção da população, há todo um arcabouço meticulosamente engendrado para que os três Poderes mantenham o status quo de intocáveis, fora do alcance, inclusive, da própria Constituição.

É o Brasil oficial ou perniciosamente oficioso e que medra como erva daninha dilapidando o Brasil por dentro. O mais espantoso em todo esse processo de dilaceração do Estado é que, nesses últimos cinco séculos, a população vem conseguido sobreviver, aos trancos e barrancos, mesmo a despeito de suas instituições e apesar delas e de suas tiranias.

Não surpreende sermos considerados uma nação ímpar, que há séculos vive num autêntico sistema anárquico de governo. De fato, o povo não confia, mas também não aposta um níquel furado em suas instituições, preferindo viver à parte, porque sabe que essa é a melhor receita para sobreviver num país desigual e injusto. A fórmula é simples: fingir-se de morta.

 

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