SIONEI RICARDO LEÃO — Jornalista, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF)
Há 155 anos, numa clareira situada na área rural do município de Jardim, em Mato Grosso do Sul, ocorreu uma chacina de soldados brasileiros durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). O local é conhecido como Kamba'Race — que, em guarani, em tradução livre, significa choro, gemido ou lamento de negro. O episódio aconteceu em 24 de maio de 1867, quando o coronel brasileiro Carlos Alberto Camisão reuniu os mais importantes oficiais da coluna para decidir sobre a situação dos soldados infectados com cólera. Nesse momento da campanha, a tropa brasileira vinha recuando de volta ao território brasileiro após terem marchado até a Fazenda Laguna, no Paraguai.
Os inimigos fustigavam a tropa com escaramuças, ateavam fogo na região por onde os brasileiros pretendiam percorrer e usavam de outras artimanhas para aumentar o martírio da coluna. A tropa malnutrida e com moral baixo àquela altura contava, aproximadamente, 700 homens. Parte significativa se ocupava em transportar os coléricos em macas. Os soldados, naquele mês de maio, demonstravam fadiga e rebeldia pelo fardo de carregar os adoentados.
Por todos esses motivos, a ordem do coronel Camisão foi transportar e abandonar os doentes na outra margem do Rio da Prata. Junto deles, foi fixada uma placa de madeira com a inscrição "Compaixão para com os coléricos". A intenção era sensibilizar as forças paraguaias que vinham no encalço. A cavalaria inimiga não se sensibilizou. Os moribundos foram mortos a golpes de lança e ao fio da espada. Na clareira do Kamba'Race, segundo moradores de Jardim, é possível ouvir os gemidos dos homens que ali foram sacrificados. Por isso, tornou-se comum na região divulgar que a clareira é mal-assombrada.
O nome dado ao lugar serve de evidência à participação de afrodescendentes brasileiros na Guerra do Paraguai. Existem evidências de que a proporção nas tropas brasileiras era de um branco para 45 negros. São muitas as referências sobre essa massiva participação no Exército Imperial. Estudiosos divergem quanto à proporção entre negros livres e escravizados que lutaram pelo Brasil naquele conflito. Portanto, é pertinente considerar que os 135 adoentados eram negros na grande maioria, cuja morte explica a construção do mito de Kamba'Race.
Fonte importante sobre a invasão de Mato Grosso pelo Paraguai, árduo episódio da história militar brasileira, é o livro A Retirada da Laguna. O autor, Alfredo d'Escragnolle Taunay (Visconde de Taunay) participou da coluna como jovem tenente. Não fosse o relato dele, esse momento da história nacional seria ainda menos conhecido.
O acervo do arquivo público de Mato Grosso contém a trajetória improvável e simbólica de um dos integrantes dessa coluna, um escravizado de nome Pedro Pardo, que fugiu do cativeiro para alistar-se no Exército e atuar no esforço para expulsar os paraguaios do território brasileiro. Pedro Pardo ou Francisco Antônio Martins foi um dos heróis da Retirada da Laguna. No entanto, sua "proprietária", dona Escholástica Maria de Jesus, ao tomar conhecimento da história, exigiu perante as autoridades da Província de Mato Grosso que o escravizado lhe fosse devolvido, o que de fato ocorreu. Pedro Pardo, apesar do suor, sangue e lágrimas vertidos pelo Império, retornou à condição de escravizado. É curioso pensar que ele tenha feito jus a condecorações e as tenha recebido enquanto voltava aos grilhões da vida de escravizado.
Tomei conhecimento do Kamba'Race quando servia como terceiro-sargento no 18º Batalhão Logístico em Campo Grande. O relato me impressionou. O que seria a princípio uma pesquisa de pós-graduação do curso de Política e Estratégia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em parceria com a Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg), ganhou outra dimensão. Pouco depois, adaptei o conteúdo a um documentário que foi laureado pela Fundação Cultural Palmares, em 2005. Ano passado, tive a grata oportunidade de lançar o livro Kamba'Race pela editora da Fundação Cultural Astrojildo Pereira. Além do tema da Guerra do Paraguai, nele divulgo pesquisa inédita com as trajetórias de 11 generais afro-brasileiros.
O livro vem tendo boa repercussão em vários jornais da grande imprensa. Foi também possível promover lives, entrevistas e palestras a respeito. O objetivo dessa pesquisa foi reconhecer e popularizar o heroísmo, sacrifício e compromisso da população negra com a defesa do território nacional e a contribuição à formação do Exército Brasileiro em vários momentos da história da nação.
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