SILVESTRE GORGULHO - Jornalista, foi secretário de Estado de Comunicação (1985/1988) e de Cultura (2007/2010)
Cego é quem tem medo de ousar. Brasília nasceu de uma ação geopolítica ousada sob o comando do presidente JK. A seu modo, JK sacudiu o Brasil. Seu governo plantou hidroelétricas, estradas, bom humor e compromissos. Cumpriu todas as 31 metas prometidas durante sua campanha à Presidência. Plantou indústria automobilística e magnanimidade, perdoando revoltosos e inimigos políticos. JK plantou Brasília. O Brasil colheu um novo país. Brasília é a capital da ousadia. Não sou cineasta, mas vou fazer o roteiro de um filme ainda não rodado, mas já exibido em Brasília, e que terá novo capítulo dia 17 de maio.
Primeira cena: de junho de 2020 a agosto de 2021, o jurista Cláudio de Castro Panoeiro foi Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Hoje, Panoeiro é o Secretário Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Com um detalhe: Cláudio Panoeiro é cego. Nasceu com uma doença autoimune e degenerativa da retina chamada retinose pigmentar. Sem medo do desconhecido, Panoeiro conseguiu se formar em primeiro lugar, com nota máxima, doutor em direito pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Foi a primeira pessoa cega a fazer uma sustentação oral no STJ. Teve, é verdade, fortes decepções na vida, como a que aconteceu na última fase de um concurso para juiz federal, ao ouvir do examinador: "Não reconheço a possibilidade de ter um juiz cego".
Cego foi o juiz que não viu onde um deficiente visual pode chegar. Em junho de 2020, na sua posse como Secretário Nacional de Justiça, com a presença do então ministro da Justiça André Mendonça (hoje, no Supremo) e da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, Cláudio Panoeiro explicou o segredo do sucesso de qualquer pessoa, deficiente ou não. "Todo sucesso depende de dois elementos. Vontade de chegar a algum lugar e ter a oportunidade de alcançar seus objetivos."
Segunda cena: volto ao ano de 2007, início do governo Arruda. Justamente no 40º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro quando aprendi uma velha lição: só é cego quem não quer ver. Essa história, há 15 anos, mudou muitas vidas. Mudou, sobretudo, a relação dos patrocinadores e apoiadores da Sétima Arte no Brasil. O exemplo de Brasília despertou a importância da acessibilidade para cegos e surdos nos cinemas e nas produções cinematográficas.
Vale lembrar. Um mês antes da abertura do Festival de Cinema, fui provocado pela flautista e educadora Dolores Tomé de que os cegos queriam participar do Festival de Cinema. Tivemos que desenvolver uma tecnologia para que os cegos tivessem a audiodescrição da imagem da tela (quando não houvesse som) para o perfeito acompanhamento do filme. Foram quatro testes no Cine Brasília, com a ajuda efetiva de 17 cegos e do então presidente da Associação Brasiliense dos Deficientes Visuais, César Achkar, e com o apoio do Correio Braziliense.
Terceira cena: em 2008, o projeto avançou. Os próprios cegos criaram o Troféu Vagalume, que premiava o melhor filme na escolha deles. No ano seguinte, o cego João Júlio fez seu primeiro filme.
Quarta cena: o tempo passou. Agora, em 2022, dia 17 de maio, Brasília comete mais um ato de pura ousadia. Um desafio pessoal da secretária de Estado da Educação, Hélvia Paranaguá, em parceria com a diretora da Kingdom School, Alice Simão. Hélvia Paranaguá pediu à sua assessora Vera Barros para mobilizar a equipe e reunir no auditório da escola Kingdom School, na Q.I. 11 do Lago Sul, alunos cegos e surdos da rede oficial de ensino para receber a palestra Arte & Cores, do artista plástico Carlos Bracher. Mais de 80 alunos cegos e surdos participarão. Eles vão pintar dois quadros sob a luz e energia do Bracher. Pela manhã, os cegos e surdos vão pintar um quadro sobre os 200 Anos da Independência do Brasil. À tarde, pintarão outro quadro sobre Brasília, 62 Anos.
Quinta cena: dia 18 de maio, quarta-feira, os alunos da Kingdom School, que estudaram intensivamente a vida e a obra de Carlos Bracher, farão uma exposição sobre o artista. E, à noite, haverá uma homenagem ao escultor mineiro. No evento, ele vai revelar seu novo e grande desafio para Brasília: lançará o projeto da criação de uma escultura sobre o calculista e poeta Joaquim Cardozo, engenheiro que deu leveza e beleza a todos os palácios projetados por Oscar Niemeyer. A escultura será exposta na Esplanada dos Ministérios, em lugar a ser escolhido pelo GDF.
Sexta cena: já foi o tempo em que cegos não enxergavam. Que eram dependentes. Hoje, eles ultrapassam barreiras, aceitam desafios e provam que a pior cegueira é aquela que impede mesclar ações e conquistas da raça humana com solidariedade. Cego é quem tem medo de ousar para não errar. Cegueira é acreditar que a felicidade adentra nosso coração apenas para dar prazer. Puro engano: a felicidade só é real, verdadeira e duradoura se for compartilhada.
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