Guerra no leste europeu

Artigo: O terceiro pós-guerra

Correio Braziliense
postado em 04/05/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

JORGE FONTOURA - Professor e advogado

Thomas Friedmann, Prêmio Pulitzer e versado analista de política internacional, em recente artigo acerca da guerra na Ucrânia, tratou-a como primeiro conflito mundial de fato. É que, não obstante os 17 milhões de mortos da Guerra de 1914, bem como os 55 milhões da Segunda Guerra, de 1939, os epítetos "mundiais" atribuídos àqueles fatos históricos seriam exagerados, mais retóricos que reais.

Ou, por outra, que só a tessitura globalizada da atualidade permitiria atribuir efetiva natureza mundial a fatos históricos, com o mundo reduzido a um gigante disforme, conectado e urbanizado, transparente e avassalador. Daí a guerra ao vivo, na crueza do post de participantes, como inédito choque psicossocial de desconhecidas consequências. Soldados e civis, com prosaicos celulares, a matar e a morrer on-line, sem filtro e sem edição.

Também haveria que tomar em conta a perspectiva da guerra absoluta, pelo imediato contágio da economia global afetada pelo derramamento de danos. Trata do spill over no dizer acadêmico a guerra econômica paralela, com sanções que a todos penalizam, vencedores e vencidos. Ao léu as cadeias mundiais de comércio, a segurança energética, o direito internacional, os fluxos de moedas, a cooperação e a integração. Abalo a não poupar economias das mais distintas e distantes, a comprometer princípios basilares de convívio harmônico. A crise energética derivada da limitação de abastecimento de gás russo à Europa ocidental, por exemplo, por dutos subterrâneos às próprias estepes ucranianas e paisagens bálticas, sem tomar em conta limites e fronteiras.

Condicionada por todos esses fatores, a atual guerra de 2022, que sequestra as boas relações internacionais, mais um capítulo no atávico fratricídio pan-eslavo, em lapso de semanas escalou com inédita gravidade. E, nesse caudal, o mundo que se estimava seguro, cioso da nova ordem mundial, viu-se paralisado na feiura da guerra, retrojetado a medos pretéritos, como o de ataques nucleares que se criam banidos tanto pela razão quanto pelo progresso moral da humanidade.

A paralisia de mecanismos de contenção de ameaça à paz, adornados pela diplomacia do insulto entre mandatários — a vociferar como celerados de redes sociais — é outra marca de inconcebível momento. Seria a guerra na Ucrânia fato histórico de transição de eras, o fim da Idade Contemporânea? Seria a natureza humana irremediavelmente insana?

Todas essas inquietações desafiam a inteligência e o ímpeto regenerador da humanidade, já em negociações ao fim da barbárie incivil que presenciamos. E são notáveis os esforços para a efetiva negociação a caminho da paz. É de esperar algum progresso a abstrair razões que possam ter russos ou ucranianos, e, de resto, toda a comunidade internacional, e que devem ser arguidas sem guerra. Por meio de formas civilizadas próprias, como as de solução de controvérsias ao dispor de membros das Nações Unidas, países amantes da paz, como inscrito de forma talvez panglossiana no Preâmbulo da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).

É a esperança, por fim, que sempre se faz necessária. Se, de fato, estivermos no vórtice do conflito mundial, primeiro ou terceiro, pouco importa, há sempre o alento de ser possível a convivência pacífica, com base no direito internacional já construído e consolidado. Basta utilizá-lo. Como se fez ao final da Segunda Guerra, em histórica conferência de paz na mesma e fatídica Crimeia, hoje cenário de massacres entre povos que falam a mesma língua, ou quase isso, com suas cidades agora espectrais, Mariupol, Donets, Lugansk, Odessa.

Em fevereiro de 1945, com a guerra vencida, era necessário garantir a paz preventiva, com entendimento entre soviéticos, norte-americanos e britânicos, potenciais inimigos em futuro fatalmente atômico e de assegurada mútua aniquilação. Assim se deu quando líderes aliados abstraíram culpas e buscaram soluções concretas. Será na Conferência de Yalta que serão negociadas e aprovadas as bases da ONU como tal, com a ideia-força de segurança coletiva, concebidas como salvaguardas do mundo para a era nuclear e para sua guerra fria. Aqui estamos. Oxalá possa agora, quando muito, se não como farsa, a história repetir-se.

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