JOSÉ HORTA MANZANO - Empresário e blogueiro
Na Europa, desde a derrota do nazifascismo, ao final da Segunda Guerra, as ideias da extrema direita foram guardadas em geladeira. Não é que tenham sido erradicadas, longe disso. A capacidade do ser humano de armazenar baixos instintos é infinita. É que, durante as décadas seguintes, toda alusão a essas ideias trazia lembranças dolorosas a uma população que havia presenciado a guerra e seu cortejo de morte e miséria. Por longos anos, nada que pudesse trazer à memória bombardeios e privações teve lugar à mesa.
O tempo passou e a geração que havia assistido ao desastre provocado por ideias extremistas foi pouco a pouco desaparecendo. No entanto, mesmo com o rareamento de testemunhas oculares, a ressurgência do extremismo de direita continuou tímida: uma ameaça de surto aqui, outro acolá, nada mais. Nem a débâcle da União Soviética e o abandono da doutrina comunista foram capazes de sacudir o torpor da direita extrema.
Desde sempre, ideias de retraimento, de fechamento sobre si mesmo, de defesa de uma hipotética pureza étnica, de cerceamento à livre circulação, de hermetismo diante da imigração circularam em surdina. Mas permaneceram subjacentes, como bomba à espera de um detonador. Um dia, sem que ninguém tivesse antecipado, surgiu o estopim. Veio personificado no dirigente do país mais poderoso do planeta. Chamava-se Donald Trump.
Os que votaram por sua reeleição devem julgar que foi bom presidente. Já os 7 milhões de votos de diferença com que Joe Biden o superou amortecem essa percepção. Na política externa, o homem fez estragos. Pirotecnia, como a que pôs em prática com o dirigente da Coreia do Norte, nem sempre é o melhor caminho para resolver problemas internacionais.
O pior legado de Trump foi, sem dúvida, sua adesão explícita à doutrina do fechamento sobre si mesmo, escancarada pela tentativa de construção de um muro de contenção na fronteira por onde entram os indesejados. Sua desenvoltura desinibiu movimentos subterrâneos ao redor do mundo, que criaram coragem para se expor à luz do meio-dia.
Dirigentes de figurino abertamente reacionário — como o italiano Salvini, o húngaro Orbán, o esloveno Jansa e o próprio Bolsonaro — não teriam se sentido tão à vontade para subir ao palco se Trump não lhes houvesse antes carpido o terreno. A expressão é batida, mas continua verdadeira: Trump abriu a caixa de Pandora. Os males lá trancafiados despertaram de um torpor de sete décadas.
Comparado com o de outros países da Europa, o sistema político francês é sui generis. Por um lado, o presidente da República, eleito pelo sufrágio popular direto, detém poder muito grande, herdeiro que é de um rei guilhotinado há dois séculos. Por outro lado, o voto distrital puro aliado a um bipartidarismo de facto tendem a dar ao presidente maioria no Parlamento, tornando-o (quase) tão poderoso como os reis do passado.
A campanha eleitoral francesa foi acompanhada com lupa pela União Europeia. De fato, caso a vitória fosse favorável à extrema direita de Marine Le Pen, a Europa, como a conhecemos, deixaria de existir. Embora a candidata extremista tenha suavizado o discurso e arredondado os ângulos de seu programa, mantinha a firme intenção de retirar seu país da Otan e da União Europeia. Mais que isso, tencionava pôr fim à livre circulação das gentes, restabelecer os controles nas fronteiras, abandonar o euro, ressuscitar o finado franco francês. E, para coroar, aproximar a França da Rússia e firmar pacto militar com Putin.
Se a União Europeia resistiu ao Brexit, não resistiria à saída da França — membro fundador, o maior em superfície, o segundo em economia, o único detentor de armamento nuclear. Para Vladimir Putin, uma vitória de Madame Le Pen seria notícia estupenda. Seria prenúncio do enfraquecimento e talvez do desmonte da União Europeia, sonho acalentado por Moscou. Seria um revés para a Otan, organização que é pedra no sapato de Putin. Por fim, seria um sinal verde para candidatos a autocrata ao redor do globo, um dos quais, aliás, ocupa atualmente o Palácio do Planalto.
Desta vez, passou. Mas foi por pouco. O mundo democrático ganhou cinco anos de adiamento, a duração do novo mandato de Macron. Em 2027, voltamos a conversar. Se um conflito nuclear não tiver extinto a humanidade.