ELEIÇÕES

Análise: A desconstrução da democracia

ALMIR PAZZIANOTTO PINTO - Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

Nos países democráticos, as eleições são efemérides, nas quais se reafirma o direito de o cidadão escolher com liberdade os governantes, e compromisso de o governo respeitar a decisão emanada das urnas. A Constituição de 1988 nesse sentido é de exemplar objetividade e clareza: "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos".

Nem sempre foi assim. Após a Revolução de 1930, cujo objetivo teria sido assegurar a lisura das eleições, padecemos durante 15 anos a ditadura do Estado Novo, sob as esporas de Getúlio Vargas, e 21 de Regime Militar, quando residentes da República e governadores de Estado eram designados em conluio dos comandantes das Forças Armadas.

Têm sido árduos os esforços para a construção do regime democrático. Começaram em 1945, com a deposição do caudilho gaúcho e a eleição do general Eurico Gaspar Dutra, vencedor da disputa com o brigadeiro Eduardo Gomes. Foi permitido ao Partido Comunista concorrer com Iedo Fiúza (1894-1995), terceiro colocado na disputa. Jamais se conseguiu, todavia, exorcizar do cenário eleitoral dois maus espíritos: a radicalização dos extremos e a pretensão intervencionista das Forças Armadas.

O retorno de Vargas à Presidência da República em 1951, candidato pelo PTB, não se fez sem riscos. Um mês antes das eleições, o jornalista Carlos Lacerda lançou às Forças Armadas a seguinte conclamação: "O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar" (Lira Neto, Getúlio, Cia. das Letras, SP, 2014, vol. 3, pág. 188). Os objetivos de Lacerda foram alcançados. Em agosto de 1954, ameaçado de ser deposto pela segunda vez, Vargas reagiu com o único recurso de que dispunha, suicidando-se no dia 24. Deixou como legado político a Carta Testamento.

A campanha presidencial deste ano apresenta nítidos sintomas de violência. A radicalização está no ar. Após ser empossado presidente em 2019, Jair Bolsonaro levantou suspeitas contra o resultado das eleições das quais foi vencedor. Afirma, desde então, que teria alcançado maioria absoluta no primeiro turno, quando derrotou Fernando Haddad, candidato do Partido dos Trabalhadores.

Empenha-se Bolsonaro, incansavelmente, pela adoção do voto impresso, colocando-se contra a opinião de especialistas e do Tribunal Superior Eleitoral. Argumento de ordem prática é a impossível alteração de sistema utilizado em mais de 473 mil urnas, distribuídas por 2.645 zonas eleitorais, à disposição de 148 milhões de eleitores e de 33 partidos.

Jair Bolsonaro e os aduladores palacianos não ignoram a desnecessidade do voto impresso. Além dos investimentos, fora do alcance do exaurido Tesouro Nacional, há o problema do tempo. O primeiro turno será em 3 de outubro, dentro, portanto, de pouco mais de 100 dias úteis.

Nada disso, porém, interessa ao capitão de artilharia. Comporta-se como o caudilho sul-rio-grandense Gaspar Silveira Martins, que alertava os inimigos: "Eu posso, eu quero, em mando, eu chovo" (Lira Neto, Getúlio, vol. I, pág. 29).

Vive o Brasil, desde outubro de 1988, sob Estado de direito garantido pela Constituição, cuja guarda compete ao Supremo Tribunal Federal. Às Forças Armadas, a Lei Fundamental atribui a responsabilidade da defesa da Pátria, da garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Não lhes confere hipotético poder interventor para, com canhões e blindados, imporem à sociedade civil aquilo que bem entendem fazer.

A condenação do deputado Daniel Silveira tem o significado histórico de ato em defesa da democracia, para que não venha a perecer "nas mãos de líderes eleitos — presidentes e primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder", como advertem Steven Levitsky e Daniel Zidlatt em Como Morrem as Democracias.

Autocratas, como Bolsonaro, não resistem ao ímpeto de demonstrar autoridade e de se manter no poder. Começam pela tentativa de descrédito do Poder Judiciário e do processo eleitoral. Ao conceder indulto a réu de crime contra a democracia, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro consolida o perfil autoritário e revela projeto de desconstrução do Estado democrático. Seu objetivo outro não é senão o de rasgar a Constituição e sujeitar a nação a governo discricionário, como sofremos durante duas décadas de regime militar.

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