"O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa, o mundo acredita que tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar."
Esse é um trecho do instigante livro Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras - 2019), de Ailton Krenak, de 66 anos, um dos mais atuantes líderes indígenas do Brasil, ambientalista, filósofo e escritor. Fundador da ONG Núcleo de Cultura Indígena, foi voz ativa na Assembleia Nacional Constituinte que gerou a Constituição Federal de 1988.
Muito além da romantização ingênua dos povos indígenas feita por autores clássicos, como José de Alencar e Gonçalves Dias, no século 19, e depois da nobre luta dos irmãos Villas-Bôas e do antropólogo Darcy Ribeiro, a obra de Krenak é um tapa de advertência na cara de cada brasileiro. A propósito de mais uma passagem inócua do Dia do Índio, comemorado amanhã, é importante compartilhar as reflexões de Krenak, num momento de recrudescimento da escalada de violência e de desmonte da Funai e de políticas públicas para os povos indígenas patrocinados pelo atual governo. O estímulo crescente ao desmatamento e ao garimpo podem ser golpe fatal para o pouco que resta de um dos pilares da cultura brasileira.
A última notícia triste vem de Roraima, parte de um Brasil sem lei, onde o Estado pouco atua e quando age tende a beneficiar o poder econômico. A comunidade do Palimiú fica em terra ianomâmi, a 260 quilômetros de Boa Vista. Há uma semana, garimpeiros armados chegaram em sete barcos e invadiram a comunidade. Os índios reagiram. Relatos precários indicam vários feridos. A Polícia Federal está na região, que é de difícil acesso.
É apenas um dos incontáveis episódios de invasão que ocorrem rotineiramente no Norte do Brasil, onde a população indígena está praticamente abandonada à própria sorte. E, de fato, não existe hoje no país, por razões diversas, um mapeamento sério sobre as reais condições dessas comunidades. E a mais sórdida delas é o descaso do governo. É possível a exploração sustentável das terras indígenas? Por que não? Mas não se vê nenhuma atitude oficial neste sentido. Pelo contrário.
Diante de tanto desalento, é preciso compartilhar as reflexões de Ailton Krenak: "Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa, e nós, outra: a Terra e a humanidade (…) Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era a cidadania".
E também: "Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo e, se possível, tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter."