Acompanho a trajetória artística de Gilberto Gil desde 1967, quando ele se classificou em terceiro lugar na segunda e histórica edição do Festival da Record com Domingo no Parque, canção que trazia letra de narrativa cinematográfica. A partir da apresentação de Refazenda, aqui na cidade, em 1975, assisti a incontáveis shows que ele fez, inclusive o que dividiu o palco com Stevie Wonder, no Rio de Janeiro. Escrevi sobre todos os discos que tem lançado, desde que passei a fazer parte da editoria de Cultura do Correio.
Ele era um adolescente quando escreveu os primeiros versos, inspirados em em poemas de Castro Alves, Gonçalves Dias e Olavo Bilac, ponto de partida para uma obra que vai além de 400 composições, nas quais, além das melodias, devem ser realçados os textos de pluralidade temática, que abordam do amor a questões sociais — quase sempre de forma sofisticada. Quando soube que estava entre os indicados para concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, voltei a me ater ao livro Gilberto Gil — Todas as letras, coordenado pelo jornalista, poeta e compositor paulistano Carlos Rennó.
O livro, de outubro de 1996, saiu pela editora Companhia das Letras e chega à terceira e ampliada edição em junho próximo, mês em que o artista baiano celebrará 80 anos e 60 de carreira. O que me levou a isso foram os comentários perpetrados por milicianos digitais, contestando a eleição de Gil para ocupar a cadeira nº 20 da ABL, como sucessor do jornalista e escritor Murilo Melo Filho, sob a justificativa de ele não ter livro publicado. Certamente, são pessoas que não têm o devido conhecimento para avaliar o quão é rico e imenso o legado de Gil para a música e, por extensão, para a cultura brasileira.
Por ironia do destino, a cadeira da ABL, onde o primeiro cantor e compositor de MPB tomou assento na última sexta-feira, foi ocupada em outros tempos por Aurélio de Lyra Tavares, general que era ministro do Exército, quando, em dezembro de 1968, Gilberto Gil e Caetano Veloso, seu companheiro no movimento tropicalista, foram encarcerados e obrigados a se exilar, por determinação da ditadura militar. Sem guardar rancor, o novo imortal, em seu discurso de posse, chegou a citar — a partir de informações recebidas — "o comportamento afável e solidário e a cultura literária" do oficial, enquanto integrante da instituição.
Em sua fala, Gil foi enfático ao ressaltar a importância da ABL, principalmente nos dias de hoje: "A Academia Brasileira de Letras é a casa da palavra e da memória cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país, que se imponha à maré do obscurantismo, da ignorância, da demagogia, da feição antidemocrática. Poucas vezes, na nossa história republicana, o escritor, o artista, o produtor cultural foi, tão hostilizado e depreciado como agora". Relevantes e necessárias palavras, quando se sabe que, recentemente, o presidente da República vetou o projeto que destinava recursos para os produtores culturais por meio da Lei Paulo Gustavo.