Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília
Quando a história da democracia brasileira for escrita, o primeiro de abril será a data de suas duas mortes. Em 1964, com o golpe militar; e em 2022, com o encerramento da janela para mudança partidária aos que desejam ser candidatos em outubro. A primeira morte suspendeu o funcionamento democrático por 21 anos, um quarto de nossa história republicana; a segunda matou os partidos como instrumento de condução das causas públicas do país.
Até pouco tempo atrás, os presidentes de partido portavam bandeiras com utopias e reformas, agora escolhem entre carregar o cofre com dinheiro do fundo eleitoral, ou o caixão para enterrar sua sigla. Não se tem notícias de candidato mudando de partido em busca de bandeiras mais sintonizadas com seus princípios, nem de presidente atraindo filiados com oferta de melhores ideias e propostas para o futuro do Brasil, ou barrando imigrantes partidários por serem indesejáveis moral ou ideologicamente. As trocas de partidos foram causadas pela busca de mais recursos para financiar campanhas políticas.
Em nome de promover a democracia, o fundo eleitoral corrompeu a democracia. Desde seu início, foi uma proposta corruptora ao ludibriar a opinião pública, dizendo que bilhões de reais são necessários para fazer a democracia funcionar: corrupção nas prioridades, ao tirar dinheiro de gastos essenciais e usá-los para financiar propaganda e mesmo compra de votos.
Que democracia é esta que requer desviar tantos recursos para financiar campanhas eleitorais e pedir votos para eleitores sem comida, sem segurança, sem emprego, sem escola? Esse montante exorbitante só se explica pelo alto custo de enganar eleitores que precisam acreditar em ilusões para justificar seus votos em uma democracia que não respeita suas necessidades.
Corrupção também no comportamento dos candidatos que mudam de partido em troca de formidáveis quantias, sem preocupação com as bandeiras e reformas que deveriam carregar. No lugar de atração pelo brilho das propostas "se orientam pelo brilho do ouro", nas palavras do Carlos Lupi.
Corrupção mental dos filiados, ao tornar obsoleto o sentimento de que militância política deve ter o propósito de usar bem o dinheiro público, para realizar prioridades que atendam às necessidades sociais e às estratégias para o pleno desenvolvimento do Brasil.
Corrupção dos dirigentes que se veem obrigados a optar entre comprar novos filiados com dinheiro do fundo ou ver sua sigla definhar e morrer, ao não romper a cláusula de barreira com um número mínimo de deputados federais.
Que democracia é esta que promove alguns partidos, ao oferecer dinheiro público aos que tiveram capacidade de eleger mais deputados na eleição anterior, criando o círculo vicioso dos grandes de hoje crescerem mais no futuro pela simples razão de serem maiores?
Em sua forma atual, a democracia brasileira morre por causa de um círculo vicioso e perverso: dinheiro público retirado de prioridades sociais imediatas e de estratégias para o futuro, usado para financiar partidos e candidatos sem bandeiras para o país.
Que democracia é esta, com eleições financiadas para que perdurem partidos e políticos pescados com a isca do dinheiro público, que poderia ter servido para enfrentar os problemas nacionais?
Grave é que essas constatações provocam propostas de combater sua corrupção, matando a democracia. Devido ao absurdo desse círculo vicioso corrupto criado na democracia, cresce a proposta de matá-la para matar sua corrupção. Essa solução seria ainda pior, porque a corrupção não poderia ser criticada nem denunciada.
Por isso, para muitos, criticar o fundo eleitoral e a janela partidária, criticar erros da democracia seria como criticar a própria democracia, incentivar discursos autoritários. Mas que democracia seria esta em que suas falhas não devem ser denunciadas por medo de ameaçá-la?
A omissão não é a forma correta de combater os defeitos da democracia atual. Para tentar construir uma democracia lícita e lúcida, é preciso denunciar a democracia corrompida, buscando superar seus erros e estruturar uma democracia decente, com partidos de bandeiras, não de cofre.