LUIZ ALVES - Ògan, Projeto Onibodê
O Brasil é um país de base escravocrata e racista. As práticas racistas — durante muito tempo — foram quase veladas, mas portadoras de uma força destruidora para as pessoas atingidas. Para entender o racismo religioso no Brasil, é preciso fazer uma viagem ao passado até a encíclica Papal Dum Diversas, publicada por Papa Nicolau em 1452 e dirigida ao Rei Afonso V de Portugal. A encíclica papal é acompanhada pelo breve apostólico Divino Amore Communiti, que dava aos portugueses autorização plena para conquistar territórios não cristianizados e impor a escravatura aos sarracenos e pagãos, dando início a uma das mais sombrias épocas da história.
Com a invasão do Brasil, em 1500, trouxeram para a terra recém "descoberta", negros africanos escravizados e destituídos de seu direito nato de ser humano. Foram mais de 300 anos de escravidão e sofrimentos. Em 1888, fizeram uma pseudoabolição, jogando nas ruas seres humanos sem qualquer perspectiva de melhoras ou mesmo de condição de vida. A negros e negras escravizados era proibida, inclusive, a prática religiosa que não fosse a oficial do Estado, ou seja, o cristianismo católico.
O Vaticano, inclusive, foi o último Estado a reconhecer a abolição da escravatura, sendo os próprios padres, proprietários de pessoas escravizadas. Depois vieram os protestantes, em sua maioria oriundos do sul dos Estados Unidos da América, portanto, também com práticas escravagistas, perpetuando aqui o que haviam perdido em sua terra natal, a mão de obra escrava.
Dando um salto gigantesco no cenário político e social brasileiro, chegamos ao Estado Novo de Getúlio Vargas, que proibira as manifestações de matrizes africanas como a capoeira. No mesmo período, a Igreja impôs aos afrorreligiosos o "beija mão" das autoridades eclesiásticas pelos iniciados nos cultos africanos, levados por suas mães e pais de axé, conhecidos como pais de mães de santo, forjando, assim, uma das mais humilhantes demonstrações de submissão de uma religião perante outra, chegando a se transformar em uma triste tradição no sincretismo religioso.
Atualmente, todos nós, afro-brasileiros, colhemos os amargos frutos desse período nefasto de nossa história. O racismo religioso tem tido um crescimento vertiginoso e escancarado. A partir da década de 1980, as igrejas neopentecostais elegeram os afrorreligiosos como culpados de todas as mazelas da sociedade, promovendo a disseminação de ódio contra esse segmento religioso que vai desde ataques verbais em suas pregações até a incitação a ataques físicos e destruição de terreiros.
Tais práticas resultaram em algumas agressões e mortes, como no caso da menina Kailane, na época com 11 anos, apedrejada em um ponto de ônibus, simplesmente por estar usando roupas brancas ao sair de um Centro de Umbanda. Também em 2015, morreu Mãe Dede de Iansã, em Camaçari (BA), ao ver seu terreiro ser ameaçado de invasão por integrantes de uma igreja neopentecostal, recém-instalada na frente do seu terreiro. Ela passou mal, devido aos atos de racismo religioso, e não resistiu.
Um dos casos mais emblemáticos e que serve de referência para entendermos o racismo religioso no Brasil é o caso de Mãe Gilda de Ogun (Gildásia dos Santos), fundadora do Axé Abassá de Ogun. Ela foi vítima de uma fake news veiculada em jornal de uma igreja neopentecostal, que a acusava de práticas de feitiçaria para prejudicar o governo defendido por este segmento religioso. Tal notícia provocou uma depressão em Mãe Gilda, levando-a à morte em 2000. O caso de mãe Gilda também serviu de orientação para a implantação do Dia de Combate à Intolerância Religiosa, a ser lembrado no dia 21 de janeiro.
Temos tido diversas demonstrações recentes de práticas de racismo religioso. No primeiro dia de 2022, um terreiro foi destruído em Pernambuco. Em Brasília, a Praça dos Orixás, conhecida também como Prainha, único espaço público em Brasília destinado às religiões de matriz africana, tem sido alvo de constantes ataques, cujo objetivo é destruir as representações da afrorreligiosidade expostas naquele local.
O racismo religioso está aí, presente em nossa sociedade, e precisa ser combatido, antes que sejamos nós, afrorreligiosos, os eliminados. Essa realidade não diz respeito apenas a nós, mas a toda sociedade, pois é um desrespeito à Constituição Federal em seus princípios fundamentais. Racismo religioso é crime. Respeitar as religiões não é um favor, é uma conquista democrática.