OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS - General de Divisão da Reserva
"Quando por alguém pretendemos
nos pautar, é pelo lado bom
que convém se assemelhar."
(Molière)
Em 9 de março de 1762, Jean Calas, um comerciante de tecidos radicado em Toulouse, pai de família justo e severo, foi executado por ordem do tribunal daquela cidade, sob a alegação de que assassinara seu filho, Marc-Antoine, por, supostamente, abjurar a causa calvinista e se converter ao catolicismo.
A França católica, em guerra com a Inglaterra protestante, vivia uma política repressiva, instaurada contra os huguenotes, que os obrigava a converter-se ou abandonar o país.
A acusação contra Jean Calas foi baseada em boatos falaciosos, alimentados pela vizinhança e por clérigos interesseiros.
O comerciante, velho e alquebrado, resistiu aos suplícios, perpetrados pelos golpes dos carrascos, e morreu sobre a roda — instrumento de tortura que esticava o condenado até que seus ossos se partissem —, clamando a Deus para testemunhar sua inocência e pedindo-lhe perdão por seus algozes.
Colocando-se contra essa barbárie e lutando em defesa da justiça à memória e à viúva de Calas, Voltaire publicou O tratado sobre a tolerância.
O filósofo atacava o fanatismo irracional que tomara as rédeas da sociedade e pregava a aceitação e o respeito ao próximo. Sua peça serviu como instrumento para que, três anos após a execução, o tribunal de Paris decretasse nula a sentença e restituísse os direitos religiosos e financeiros à família e aos outros envolvidos.
No capítulo, "se a tolerância é de direito natural e de direito humano", encontra-se a passagem mais substancial daquela obra:
"O grande princípio, o princípio universal de ambos (aqui ele compara o direito natural ao humano), é, em toda a Terra, o seguinte: Não faz para o outro aquilo que não gostarias que fizessem a ti".
"Ora, não vemos como, seguindo este princípio, um homem poderia dizer ao outro: Acredita nisso em que eu acredito, ou então morrerás[…]. Crê, ou repugnar-te-ei. Crê ou farei a ti todo o mal que puder. Monstro, não tens minha religião, então não tens religião alguma. Deves ficar em horror para teus vizinhos, para tua cidade, para a tua província."
O Tratado sobre a tolerância é um texto que permanece atual, atualíssimo. A intolerância graceja na imprensa, na política, na igreja, no local de trabalho, no esporte, entre colegas de profissão, entre amigos, entre familiares. Nem tocarei em mídias sociais, pois demandaria outro tratado.
Se não rezas da mesma cartilha da contraparte e defendes a mesma ideia, tens distorcido o correto sentido do que falastes.
A frase "acredita nisso em que eu acredito ou então morrerás", com adaptações para amenizá-la, se enquadra, em nosso tempo, para tudo o que fazemos, dizemos, pensamos.
Como atores preponderantes dessa guerra de consciência vemos as instituições agirem para acelerar a divisão.
A imprensa distorce em benefício dos acessos que se transformem em dinheiro de publicidade.
A política distorce em benefício do voto que lhe traga sinecuras.
A igreja distorce em benefício da conquista das almas dizimistas.
No trabalho se distorce em benefício de promoções não merecidas.
No esporte se distorce para deleite da tribo desordeira.
Entre colegas de profissão se distorce em benefício de visibilidade sabuja à chefia.
Entre amigos se distorce, entre familiares se distorce.
Ter uma opinião original é pecado capital.
O livro sobrevoa a tolerância desde a Grécia e a Roma antigas até o século 18, quando foi escrito, mostrando a perspectiva de cada época.
Destaca um homem irracional (pautado mais pela emoção) que também é interesseiro e invejoso (nesse caso, é racional), atributos sintetizados na intolerância.
Vivemos horas de angústia, que não são exclusivas ao nosso país, de incertezas, diante da convicção fanática e dos boatos falaciosos — semelhantes aos que fizeram Calas fenecer.
A persistir essa intransigência, deve-se temer, em futuro próximo, uma nova noite de São Bartolomeu — massacre de protestantes ocorrido em 1572, cujo número de vítimas atingiu dezenas de milhares.
Se estou sendo pessimista, peço-vos a indulgência e a compreensão em face de que também sou um (in)tolerante.
Paz e bem!