Editorial

Visão do Correio: Vozes sombrias da ditadura

Correio Braziliense
postado em 19/04/2022 06:00

O que os militares tentaram negar por tanto tempo está, agora, explicitado nos áudios obtidos pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): durante o regime militar, milhares de brasileiros foram torturados e mortos, muitos confessando crimes que não cometeram depois de sessões de espancamento e sevícias. As gravações — são mais de 10 mil horas — revelam diálogos de juízes e ministros do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1975 e 1985, vários deles admitindo os abusos e pedindo investigações, outros duvidando das denúncias que inundavam a Justiça.

São estarrecedoras as revelações, como a de que Nádia Lúcia do Nascimento abortou após sofrer agressões físicas nos porões do Codi-Doi. Ela foi submetida a choques elétricos no aparelho genital. Estava grávida de três meses. Também grávida, Lícia Lúcia Duarte da Silveira foi torturada física e psicologicamente, tendo que presenciar os abusos cometidos contra o marido dela. A frase mais usada pelos militares era: "Ou confessa ou entra no pau". As denúncias que chegavam ao STM apontavam tanta crueldade, que, em um de seus pronunciamentos, o almirante Julio de Sá Bierrenbach desabafou: "Não podemos admitir que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado".

Os áudios desse período sombrio do país tornaram-se públicos por meio da jornalista Míriam Leitão, do jornal O Globo, ela própria vítima da ditadura. Grávida, foi presa, nua, numa cela escura com uma cobra. Para muitos militares, casos como esses são obras de ficção criadas pelos inimigos do país. Os que não conseguem negar os crimes, recorrem às ironias, como é o caso do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, cujo ídolo era o coronel Brilhante Ustra, que foi chefe do Doi-Codi, quando morreram mais de 40 pessoas sob tortura. Ao ser questionado sobre as gravações comprovando os crimes durante da ditadura, Mourão disparou: "Vai trazer os caras do túmulo de volta?".

O Brasil ainda precisa passar a limpo parte importante da ditadura, queiram ou não seus defensores. Os áudios obtidos pelo historiador da UFRJ terão papel vital nesse processo. Não se trata de revanche, mas é importante esmiuçar esse Brasil que insiste em permanecer nas sombras. Há pais, mães, filhos, irmãos que, até hoje, nunca encontraram os corpos daqueles que amavam, pessoas que perderam a vida apenas por discordarem de um regime covarde, no qual não se permitia o livre pensamento. Ignorar as vozes reveladas pelas gravações do STM é compactuar com os crimes.

Não se pode esquecer que, mesmo por meio dos votos, garantidores da democracia, o Brasil tem hoje um governo com forte representação militar. Qualquer movimento além das quatro linhas da Constituição pode levar o país a caminhos tortuosos que a maioria da sociedade repudia. O ideal, diz ao Correio a economista Zeina Latif, é que militares se limitem aos quartéis. Ela analisou os períodos de ditaduras pelas quais o Brasil passou. As faturas, tanto do ponto de vista social, quanto do econômico, foram enormes, com inflação, aumento da desigualdade entre ricos e pobres e endividamento público, além, é claro, da tortura. Repetir esse descalabro é inaceitável.

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