ANDRÉ LÚCIO BENTO - Linguista, especialista em cultura afro-brasileira e professor da Secretaria de Educação do DF
E se as escolas assumissem a África como berço da civilização, e não apenas como berço da humanidade? A ideia de "berço da humanidade" se sustenta em vestígios de ossos, pegadas e marcas em rochas. De fato, por terras africanas, nossos antepassados surgiram, curvaram-se e, depois, andaram de pé. Entretanto, do ponto de vista cultural, a tese de que a África é berço da civilização enfrenta fatores políticos, religiosos e raciais. E isso retarda o reconhecimento da África como território complexo e existente antes do empreendimento capitalista da escravização. Por isso, não se reconhecem, desde o continente africano, os milenares e complexos sistemas de organização social, de democracia e de construção de conhecimentos na ordem da paleontologia, metalurgia, agricultura, pecuária, astronomia, matemática, medicina, filosofia...
Manter a África tão somente como berço da humanidade significa mantê-la circunscrita como território de coisas pré-históricas e de rusticidade. Essa representação é fruto de um processo histórico que não tem sido debatido a contento na sociedade como um todo e, consequentemente, nas escolas. Coisas assim tornam perene o questionamento sobre a função social da educação escolar. Quando as escolas não trabalham os temas referentes à África sem abordá-la no que seria seu justo lugar na história do mundo, estamos diante de uma ausência que tem fundo racista.
Não se trata de culpar professoras e professores sobre essa questão. Trata-se, sobretudo, da constatação de que a escola — espaço que deveria servir para transformar realidades para melhor — acaba colaborando para que a África e toda sua matriz ocupem um lugar de subalternidade. Isso tem a ver com currículos educacionais, que são escolhas políticas e teóricas que definem, entre outros pontos, a concepção que temos de escola e de sua função social.
Vamos a alguns exemplos. O que sabemos sobre o processo de escravização da população negra no Brasil, sua estruturação em termos jurídicos, políticos, econômicos e religiosos e sobre o pós-abolição brasileiro? Somos um país forjado sobre a escravização negra, processo que acorrentou, mutilou, estuprou, explorou corpos e tentou destruir ancestralidades. No entanto, não se discutem com profundidade na escola os reais alcances do genocídio que marcou a escravização negra no Brasil e no mundo e suas consequências para a contemporaneidade. Também não se exploram as diversas revoltas e rebeliões negras contra o regime escravista, causando-nos a sensação de que experimentamos por aqui o que teria sido uma escravização afetuosa. E como se deu o processo de inserção social da população negra na transição para o período pós-abolição?
Estudamos e aprendemos detalhadamente o holocausto causado por Hitler, que levou a óbito algo em torno de seis milhões de pessoas. Mas não se ensina nada ou quase nada sobre Leopoldo II, o sanguinário rei belga que trucidou quase dez milhões de africanos na atual República Democrática do Congo, na época território transformado em propriedade particular do opressor. Por que tratamentos curriculares tão desiguais? Por que os estudantes aprendem sobre os horrores da ideologia nazista, mas são poupados dos assassinatos, das mutilações e dos esquartejamentos que foram impetrados a milhões de pessoas negras?
Por que o número diminuto de páginas nos livros didáticos sobre a Conferência de Berlim, conjunto de reuniões entre 1884 e 1885 com participação de 13 países europeus, dos Estados Unidos e do Império Otomano, para a partilha arbitrária das terras africanas, sem a participação de nenhum país africano? Os estudantes sabem que as reuniões de Berlim reduziram a África à condição de território de exploração de riquezas para os outros, como fornecedora de ouro e diamante para a manutenção dos luxos, dos palácios, das torneiras douradas, pratarias e joias das realezas europeias?
Quando os currículos educacionais negam à África também o status de berço da civilização, instaura-se o bordão acadêmico e escolar "do grego, isso e aquilo". E perpetua-se a ideia de uma Grécia que inventou o mundo cultural. E de uma África como continente das coisas exóticas, o zoológico do mundo, um território sem arte, sem ciência, sem literatura, sem teatro, sem cinema, sem produção de conhecimento, sem invenção tecnológica. É uma tentativa de deixar a África, seu povo e seus descendentes no mundo inteiro trancados para sempre no Paleolítico. E isso é racismo.
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