Por Marcelo Coutinho — Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Se a economia determinasse mesmo as decisões mundiais num mundo globalizado sem qualquer empatia, provavelmente ninguém se importaria tanto com a invasão russa em um país distante. No máximo, esse mundo se preocuparia com a estabilidade do suprimento de commodities. Ninguém arcaria com o custo da inflação e sanções. Mas não foi assim. Ainda que limitadas, as redes de solidariedade internacional avaliaram que tal agressão abria um perigoso precedente capaz de se alastrar para todo o sistema internacional, porque partia de uma grande potência nuclear revisionista.
A Rússia tem condições de mudar o mundo que uma Arábia Saudita por exemplo não tem. Não tem cabimento comparar a guerra do Iêmen com a da Ucrânia, porque seria o mesmo que comparar uma guerra civil de anos com uma invasão em massa por outro país que busca anexar territórios. São tipologias muito diferentes ainda que existam, em ambas, violações dos direitos humanos. Metodologicamente falando, igualar casos de unidades analíticas distintas é apenas fraude. Sim, mais do que um erro de análise, misturar coisas diferentes é, na verdade, colaborar com agressões ainda maiores.
A globalização passou por várias fases. Pelo menos desde o século 19, ela vem sofrendo mudanças significativas, mas em geral com um denominador em comum: a eficiência econômica, muitas vezes sem quaisquer cuidados morais, principalmente após o fim da Guerra Fria. O mundo se globalizou com os empreendimentos buscando otimizar resultados em termos estritamente de ganhos financeiros. A guerra na Ucrânia parece inaugurar uma nova etapa em que a política adquire mais relevância na condução dos mercados globais. As decisões levarão em conta, sobretudo, aspectos normativos.
Os efeitos sobre a democracia, os direitos humanos, a paz mundial, a miséria e o meio ambiente ganham mais peso nas decisões não só dos governos, como também das próprias empresas. Muitas firmas se anteciparam às diretrizes dos respectivos Estados ao saírem da Rússia invasora mesmo não sendo obrigadas a isso. Muitas multinacionais ainda ficaram lá, mas inúmeras outras alinharam-se a um sentimento mundial de repúdio aos ataques, participando das sanções. A interdependência global passa a corresponder a juízos de valores e princípios.
As trocas multinacionais continuam abertas. Ainda é um mundo de fluxos em torno de uma unidade monetária global. Porém, a dimensão política ganha mais relevância, igualando-se ou ultrapassando a dimensão econômica. E dessa forma as sanções são mais bem compreendidas. Muito mais do que fatores geopolíticos, o corte entre regimes democráticos versos autoritários revisores define essa nova ordem. Japoneses e sul-coreanos são vizinhos da China e, ainda assim, pertencem ao grupo ocidental. A própria Ucrânia é bem mais do que uma área de influência russa. Seus laços com o Ocidente são mais decisivos para os acontecimentos. Por sua vez, Cuba e Nicarágua estão sob a órbita sino-russa, mesmo estando espacialmente ao lado dos Estados Unidos (EUA).
Evidentemente, esse novo mundo exacerba ainda mais as contradições, fazendo, por sinal, muitas vezes, parecer que voltamos no tempo. Não se trata de hipocrisia, mas de política. Alianças que não obedecem ao corte democrático continuam acontecendo e nem por isso são falsidade. A união entre o Ocidente e a antiga União Soviética de Stalin na Segunda Grande Guerra contra Hitler e o fascismo não foi hipocrisia ou dissimulação. Foi política, a mesma que mais tarde levaria o Ocidente a enfrentar os soviéticos. Do mesmo modo, é preciso analisar, por exemplo, a recente reaproximação de Washington com Caracas face o expansionismo de Putin.
Portanto, essa globalização que chamo de politizada recupera, em parte, antigas divisões observadas na história do imperialismo. Mas não exatamente. Quando Churchill, Roosevelt e Stalin se aliavam estrategicamente contra o nazismo, o mundo havia se desglobalizado. Agora é diferente. A globalização é profunda, e sobre ela acontecem os arranjos políticos que a reorientam, fazendo com que os seus fluxos não obedeçam mais apenas a complementariedade econômica, como também a compatibilidade política-institucional. Isso significa que os investimentos e acordos comerciais consideram, evidentemente, os ganhos financeiros, mas com ponderações normativas, como o benefício ou o malefício que eles podem acarretar para a civilização e o meio ambiente.
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