O que os regimes autocráticos, despóticos ou nada afeitos à democracia têm em comum, além do ímpeto de concentrar o poder? O desejo quase incontrolável de silenciar os opositores. Enquanto bombardeia a Ucrânia e alveja impiedosamente a população civil, a Rússia, de Vladimir Putin, tenta calar a cassetete e amordaçar com a censura quem se atreve a gritar contra a guerra. O czar dos tempos modernos se recusa a ser contrariado. O Kremlin sancionou uma lei que pune com 15 anos de prisão quem chamar a ação na Rússia pelos nomes que lhe cabem: guerra ou invasão. Também a quem espalhar "notícias falsas" sobre as ações da Rússia no exterior. Mas o que seriam as tais "notícias falsas"? Qual o critério para defini-las?
Até mesmo um dos mais destemidos jornalistas russos teve que capitular ante as ameaças do Kremlin. Na segunda-feira, Dmitry Muratov — Nobel da Paz em 2021 — anunciou o fechamento temporário do diário independente Novaya Gazeta, do qual é editor-chefe. Não sem denunciar uma espécie de censura militar imposta dentro do jornal. Entrevistei Muratov em outubro passado. Ele contou sobre os colegas da redação, assassinados por investigarem suspeitas de corrupção ou por criticarem o governo de Vladimir Putin. "O jornalismo livre é valor básico e necessidade do ser humano. Uma sociedade saudável não pode existir sem uma imprensa livre e forte, sem informação", disse-me Muratov, naquela ocasião.
Sim. Sociedades saudáveis precisam de imprensas livres e fortes. Mas, também, de liberdade de expressão e de associação. Cidadãos de sociedades saudáveis e que se intitulam democráticas precisam exercer o direito de protestar pacificamente contra governantes que não cumprem com o seu papel; que não se colocam na posição de líderes; que espalham a cizânia e a polarização; que falam em Deus e defendem o uso de armas; que se vestem de paladinos da moral e da família, enquanto praticam a misoginia e a homofobia; que fazem declarações oficiais como se estivessem em botequim da esquina, sem qualquer respeito pela liturgia do cargo.
Qualquer ato de censura equivale a arremessar o mínimo de apreço pela democracia na sarjeta. Qualquer semelhança entre governos da Rússia e do Brasil não é mera coincidência. Antes de a guerra começar, o presidente brasileiro foi a Moscou demonstrar alinhamento com um líder que também se julga democrata, que persegue os homossexuais a ferro e fogo, que tem aversão pela voz das ruas. Que o brasileiro sempre erga a sua voz quando achar necessário. E que nenhum poder se ache no poder e no direito de silenciá-lo. Cala a boca já morreu...