William Douglas - Desembargador federal no TRF2, mestre em direito e escritor
Houve um tempo em que a internet era apenas ficção e nossas principais ferramentas de comunicação eram outras. As pessoas tinham o estranho hábito de conversar nos bares e restaurantes, em seus trabalhos e em casa. Nas mesas, falavam por horas e horas. Não satisfeitas, chegavam em casa e ainda telefonavam para os amigos.
A popularização da web e dos smartphones mudou tudo. A maior parte da população passou a usar aplicativos de troca de mensagens. Com eles, falamos com filhos e colegas de trabalho, criamos grupos de estudos e cursos online e, até mesmo, lemos em tempo real mensagens do presidente da Ucrânia em meio a uma guerra. Nos últimos anos, alguns aplicativos específicos, como o Telegram e o WhatsApp, ficaram em evidência no Brasil, entre outros motivos, por causa de processos judiciais que resultaram, ao menos momentaneamente, em decisões que determinaram sua suspensão.
A mais recente suspensão foi aplicada ao Telegram, que permite a criação de grupos com maior número de integrantes do que o concorrente e facilita o envio de mensagens em massa. Por um lado, pequenos empresários podem fazer grupos com centenas de clientes, otimizando sua divulgação. Há também, no entanto, quem o use para debater política. Ou seja: de pequenas uniões de amigos a grandes aglomerações, o app permite grande interação. Os ambientes quase sempre se tornam caóticos, porém, livres e democráticos.
Como na vida, a interação na internet, inclusive por meio dos aplicativos, está sujeita a problemas. Entre as mensagens trocadas e difundidas de forma interpessoal para listas de contatos ou em grupos há informações corretas sobre candidatos, mas também muita desinformação, fake news e até mesmo crimes contra a honra, contra a democracia, mensagens racistas e de intolerância.
Legitimamente preocupado com a lisura das eleições, o Judiciário passou a combater tais práticas. Numa ação bastante positiva, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chamou empresas responsáveis pelas redes e aplicativos e criou mecanismos que, mesmo naõs sendo os ideais, pelo menos apontam para o rumo correto, que é assegurar um ambiente eleitoral limpo.
É nesse contexto que vem a recente decisão de suspender o Telegram, usado como plataforma para mensagens consideradas pela decisão judicial como excluídas da liberdade de expressão. Em que pese a boa intenção, temos sempre de lembrar que os fins não justificam os meios. Milhares de pessoas usam hoje o Telegram e outros aplicativos e não cometem crimes. Suspender um aplicativo devido ao que seria uma suposta má conduta de uma pequena minoria não parece razoável dentro do Estado de direito.
Um ponto a ser analisado é que tal limite não encontra eco no texto da Constituição tampouco nas normas infraconstitucionais, que também não estabelecem a figura do "crime de opinião". Uma informação sabida ou inadvertidamente falsa não tem, por si só, de modo isolado, tal conteúdo criminoso. Não é ilegal, logo não pode ser tolhido, ter grupos de transmissão multitudinários. Vedar isso não tem base legal e, pior, prejudica a democracia.
Outro item que precisa ser discutido é que, fora do aplicativo, crimes são cometidos em praças, carros são usados para roubos e fertilizantes são usados em plantações de drogas ilícitas. A solução para tais problemas seria proibir a visitação das praças, o uso de carros ou a venda de fertilizantes? O mundo virtual, há muito parte da realidade, ainda é incompreendido e mal absorvido pelas estruturas engessadas do Judiciário. Em quase toda a internet encontramos problemas causados por uma minoria — inclusive os crimes de tráfico de armas, estelionatos e pedofilia. Vamos suspender toda a rede? Claro que não.
Nem todos sabem qual é a dor, embora conheçam a delícia que é viver num Estado de direito. Nossas liberdades são asseguradas. E ninguém pode pagar por crimes de terceiros. Autoridades devem apurar as infrações, identificar responsáveis e puni-los na forma da lei.
Igualmente relevante é recordar que é o próprio cidadão, e não o Estado, quem deve pesar as informações recebidas. O Estado não pode pretender dizer o que é verdade ou não, sob pena de encenarmos a situação descrita por George Orwell no livro 1984. Indo além, a mentira por si só, embora seja pecado, não é crime e até mesmo ela não está sujeita a censura prévia (arts 5,IX e 220 da CF).
Ninguém pode ser privado de coisas boas e de suas liberdades por causa do suposto erro alheio. Ao termos um aplicativo cancelado, é a liberdade de expressão, consagrada pela Constituição, que é desrespeitada. As intenções podem ser boas e algumas ações podem ser necessárias, mas não podemos permitir que nada seja maior que o cumprimento fiel da Constituição.