MARCOS CINTRA - Doutor em economia pela Harvard University (EUA). É professor-titular da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foi secretário especial da Receita Federal e deputado federal
Não pretendo discorrer sobre minhas inúmeras discordâncias com a PEC 110, entre elas 1) o deslocamento de carga tributária em desfavor dos setores intensivos em mão de obra; 2) a agressão ao princípio constitucional da divisão de competências tributárias entre estados e municípios; 3) os prazos de testes e transição que chegam à eternidade de 40 anos para garantir segurança às empresas e limitação de perdas aos entes federados; 4) o aumento da regressividade e o crescente desrespeito ao princípio constitucional da capacidade contributiva, ao ampliar a tributação indireta sobre o consumo; 5) o vertiginoso aumento da burocracia e da complexidade gerado pelas concessões feitas pelo relator, sobrepondo-se ao arcabouço original da PEC 45 (que sob o aspecto formal era de melhor qualidade); 6) a incerteza na arrecadação, causada pela adoção do princípio de destino nas transações internas; 7) os desequilíbrios introduzidos no complexo sistema tributário com reformas parciais que ignoram o conjunto, nem 8) a ausência de qualquer menção ao mais nocivo tributo existente no Brasil que é a incidência sobre folha de salários em um país carente de emprego.
A lista é muito mais longa, mas desejo neste espaço fazer algumas considerações aparentemente menos importantes, mas que nos faz lembrar que o diabo mora nos detalhes.
Uma primeira indagação se refere à remessa de todos os temas polêmicos à lei complementar. Correta do ponto de vista da técnica legislativa. Mas devemos lembrar que a decisão sobre o texto principal não é independente da regulamentação do tributo. Ou seja, a junção de setores tributados apenas pelo ISS, como os serviços, aos tributados pelo ICMS terá avaliações diferentes dependendo da alíquota modal e da alíquota especial ou preferencial que a lei complementar definir. A PEC 110 prevê tributação diferenciada para educação e saúde, para transporte público, produção agrícola, combustíveis, Simples, ZFM, condomínios etc. (ao todo serão mais de duas dezenas de setores com tributação isenta ou preferencial, permanente ou temporariamente).
A lei complementar poderá determinar alíquotas especiais muito favoráveis aos setores beneficiados. Ou, pelo contrário, desfavoráveis a eles ou a alguns deles. No entanto, qualquer que seja o teor da lei complementar, a junção estará previamente sacramentada. Isto é, ou não, um cheque em branco, um salto no escuro? Não faz sentido portanto, que um tema tão complexo como esse seja aprovado sem condições que garantam previamente o desenlace desejado.
Outra questão diz respeito à suposta simplificação introduzida pela PEC 110.
Será? O período de seis anos, nos quais haverá tributação simultânea por dois sistemas diferentes (o atual e o novo), aponta para simplificação ou para maior complexidade? O IVA tem natureza declaratória de maior complexidade, e sua extensão universal, inclusive a micro, as pequenas e médias empresas, será simplificação? Ou complicação?
O reembolso do IBS para as famílias de baixa renda é outro tema atraente, porém ardiloso. Experiência semelhante existe, sim, por exemplo no Uruguai. Um país de quatro milhões de habitantes com pouco mais de uma centena de milhar de famílias beneficiadas. É bem diferente de uma economia como a do Brasil, onde 40 milhões de indivíduos, ou mais, precisarão ser atendidos. Basta verificar que o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou que o auxílio emergencial foi pago ilegalmente a pelo menos 7,3 milhões de pessoas a um custo de mais de R$ 54 bilhões. Portanto, os custos para identificar os beneficiários, apurar os impostos pagos e reembolsá-los corretamente será tarefa difícil e provavelmente altamente custosa. Easier said than done, diriam os ingleses.
E onde estão os estudos e avaliações de impacto da PEC 110? O relator brada alto e em bom som que a economia terá um impulso adicional de crescimento e eficiência. Quando? A partir da aprovação da PEC, seis anos após os testes ou depois da transição de 40 anos? Previsão ou palpite? Não é aceitável que uma reforma com a complexidade da PEC 110 seja aprovada com base em wishful thinking (pensamento positivo) e sem estudos aprofundados e amplamente discutidos com os especialistas.
Um posicionamento responsável do Congresso exige nada menos que a suspensão da tramitação da PEC 110, e que um projeto de reforma de todo o sistema tributário brasileiro seja encomendado a um grupo de especialistas independentes. Para o bem do país, para o bem do próximo governo a ser eleito neste ano.