Sacha Calmon - Advogado
O tema legalidade, na prática (práxis), é antigo, bem antigo, pois o país não respeita a jurisprudência. Reitere-se a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 5.929, reconhecendo que o incentivo fiscal de ICMS somente pode ser concedido por lei em sentido estrito. Sendo assim, sua revogação ou modificação tem que se dar por meio do mesmo veículo normativo. Essa ação direta de constitucionalidade é um marco no direito tributário brasileiro. Não pode haver delegação de competência tributária.
A violação ao princípio da legalidade tributária: art. 163, I, CE, noutro plano, merece ter outra visão a partir do art. 163 da Constituição: "Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça".
Da mesma forma, como exposto no tópico anterior, lei estadual é sempre necessária (princípio da legalidade), agora sob o aspecto de que, quando o Poder Executivo reduzir ou suprimir os benefícios fiscais de ICMS, isso acarreta aumento de ICMS, por indireta via (do imposto-chave dos estados).
Verdade que o aumento não se dá de forma direta, na medida em que não haveria a publicação de uma norma que aumentasse a alíquota do ICMS ou, ainda, reduzisse a possibilidade de utilização do crédito outorgado. Mas não se pode negar que a autorização dada, como um cheque em branco para o Poder Executivo editar decretos nesse sentido, incorre em aumento de tributo e isso acaba por resultar em aumento da carga tributária, destoando do CTN e da CF.
É que o princípio da legalidade impede que seja conferida ao Poder Executivo a prerrogativa de reduzir ou restabelecer benefícios fiscais, pois isso implica, respectivamente, aumentar ou reduzir a tributação. Um tal poder significaria a negação do princípio da legalidade, explodindo o sistema tributário, se tal ocorrer.
Como explicitado nos tópicos anteriores, é a lei mesma que deve tratar das normas de incidência tributária, vedada a delegação de competência ao Poder Executivo de matéria reservada à lei. Se assim não fosse, fácil seria burlar a hierarquia das leis em matéria tributária, pois bastaria que o Poder Legislativo transferisse toda a disciplina da tributação ao Executivo para que este, unilateralmente, exercesse o poder de império a seu bel-prazer, editando decretos autônomos, ou seja, decretos diversos dos decretos de regulamentação das leis.
A diretiva da legalidade coíbe justamente esse tipo de manobra que tende a retirar da deliberação do Legislativo (representante do povo) matéria tributária. "No taxation without representation", disseram os ingleses há séculos vencidos. Por isso, autorizar o Poder Executivo a majorar as alíquotas de ICMS que estejam legalmente fixadas abaixo de 18%, via decreto do governador de estado, é uma leitura reversa da seletividade desse tributo, sujeitado ao Legislativo. Mas isso ocorreu em São Paulo.
No estado de São Paulo, constatou-se que parcela significativa dos itens relacionados no artigo 34, da Lei Estadual n° 6.374/89 (Lei do ICMS) estavam abaixo da alíquota de 18%, eram essenciais para o consumo popular, tais como aves, gado bovino, suíno, caprino ou ovino, ova, farinha de trigo, escova de dentes, medicamentos genéricos, fármacos de soluções parenterais, preservativos e Telecom (internet banda larga popular) etc. O governador, por decreto, não poderia mudar a lei aumentando o ICMS mediante a revogação por decreto de vários incentivos fiscais. Está dito, desde aquela época, que tal não pode acontecer acudindo o melhor direito na interpretação da Constituição ao STF provocado pela Fiesp.
Daquela época para cá, outros ataques sofremos nós, a mostrar a esquizofrenia que enferma o nosso sistema tributário, especialmente nas leis complementares. O Executivo dos estados ou da União abusam, mas os legisladores também abusam.
O assunto convoca, necessariamente, alguma explicação sobre a ordem jurídica dos estados federativos. Em que pesem as particularidades dos vários estados federais existentes, um fundamento é intrinsecamente comum a todos eles: a existência, ou melhor, a coexistência de ordens jurídicas parciais sob a égide da Constituição.
No Brasil, existem três ordens jurídicas parciais, que subordinadas pela ordem jurídica constitucional formam a ordem jurídica nacional. As ordens jurídicas parciais são: (a) a federal, (b) a estadual e (c) a municipal, pois tanto a União, como os Estados e os Municípios possuem autogoverno e produzem normas jurídicas. Juntas, essas ordens jurídicas formam a ordem jurídica total, sob o império da Constituição, fundamento do Estado e do direito. A lei complementar é nacional e, pois, subordina as ordens jurídicas parciais. (O Distrito Federal é estado e município a um só tempo.)