MARCELO COUTINHO - Professor de política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
A invasão russa na Ucrânia não encontra justificativa moral nem mesmo teórica no campo de estudo dedicado ao assunto desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Não obstante, a teoria da política internacional tem sido distorcida para caber nos propósitos de Putin, que arruinou com a cooperação que a Europa lhe abriu durante duas décadas, inclusive com dependência energética, uma das maiores provas de que não havia nenhuma animosidade ou interesse fundamental que ameaçasse Moscou efetivamente. O pretexto encontrado para a invasão é uma política de força, característica do realismo, mas que para existir precisa cumprir alguns pré-requisitos.
A corrente teórica realista é constituída por alguns pressupostos bastante consolidados pela comunidade que estuda paz e guerra, entre eles, sobretudo, a racionalidade, a anarquia das relações internacionais e a ideia de que o Estado (unidade política nacional) é o ator verdadeiramente importante nesse cenário. Para o realismo e o neorealismo, as instituições não são relevantes, isto é, são epifenômenos que não devem ser muito considerados na análise da política internacional.
A primeira distorção teórica óbvia que se vê para tentar justificar ou "explicar" as ações de Putin é a Organização do Tradado do Atlântico Norte (Otan). Para quem pouco importam as organizações internacionais, os supostos realistas da análise da guerra na Ucrânia dão valor muito grande à Otan. O realismo jamais enfatizaria o que ele mesmo classifica como mera consequência das ações dos estados, sobre os quais se deveria debruçar para compreender o que acontece no mundo. Portanto, é no mínimo estranho que "realistas" usem a Otan para explicar alguma coisa.
A única saída teórica possível para um realista enfatizar o papel da Otan é sendo ela apenas um reflexo de uma coalizão de Estados, no caso, os Estados Unidos (EUA) e a Europa, sobretudo. Mas aqui também a suposta explicação realista estaria fora de lugar. O raciocínio é simples: se a Rússia invadiu a Ucrânia porque teme a grande potência ocidental, então, a presença institucional da Otan na sua vizinhança não teria qualquer relevância explicativa. Mesmo que a Otan desaparecesse, os EUA continuariam existindo, e com eles, as supostas explicações para uma invasão na Ucrânia.
Sem a Otan, Putin estaria falando do mesmo jeito em bases militares dos EUA ou em acordos bilaterais que ameaçariam o seu país. Qualquer ação americana seria um pretexto. É importante que se diga que a Ucrânia não é integrante da Otan nem mesmo estava em processo de se tornar um país-membro. Não havia bases militares americanas na Ucrânia nem ameaça disso. A verdade dos fatos é que a Otan estava nas fronteiras da Rússia há muito tempo, em outros lugares que não o país agora invadido. Se a Otan era uma ameaça, já era uma ameaça instalada, e mesmo assim nenhum país se atreveria a atacar uma grande potência nuclear como a Rússia. Tal suicídio de um Estado seria impróprio do realismo.
A Ucrânia era uma potência nuclear. No início dos anos 1990, ela abriu mão das suas armas atômicas a favor da paz, com a garantia de que a Rússia não a invadiria. Foi a Rússia quem desrespeitou todos os acordos feitos e que a beneficiavam. Não é realista também a ação de Putin do ponto de vista da racionalidade. O líder russo calculou tudo errado, subestimou a resistência ucraniana, a inteligência do mundo e as sanções, e superestimou suas capacidades militares e o apoio chinês. Mais importante de tudo, com essa ação irracional, a Rússia uniu os seus rivais, fez com que outros países agora queiram mais do nunca entrar na Otan para se proteger e, sobretudo, ressuscitou a liderança mundial dos EUA.
Se os pressupostos realistas não se encaixam nas atitudes da Rússia, então, o realismo não pode oferecer qualquer interpretação para as motivações dessa guerra. Usaram-se algumas falas recentes de John Mearsheimer, um autor do realismo ofensivo (uma variante minoritária em todo o pensamento realista), para tentar salvar algum verniz teórico nessa guerra. Mas por aí também não se sustenta a tese de que Washington não deveria "provocar" Moscou ou quebrar certo equilíbrio entre grandes potências em suas respectivas regiões. Todo o receituário de Mearsheimer, em The tragedy, vai no sentido contrário disso. Ele diz que grandes potências fazem ou deveriam, sim, promover estratégias como jogar iscas e fazer o seu rival sangrar. Se foi exatamente isso que os EUA fizeram, então, segundo o realismo ofensivo, Washington agiu bem.
Se Putin mordeu a isca, então, não foi realista, mas apenas alguém inebriado pelo poder autoritário e riqueza, pois suas ações enfraqueceram e dividiram muito a Rússia. Essa é a única leitura realista possível da guerra na Ucrânia. Mas os apoiadores de Trump e parte da esquerda latino-americana julgaram que essa era uma oportunidade para criticar Biden e até apoiar Putin. Na verdade, o presidente americano só tem ganhado politicamente com essa história toda. Sua popularidade estava baixa e sua liderança mundial, ofuscada. Agora, o velhinho Biden pode dizer que nenhum outro presidente dos EUA desde Regan impôs tanta derrota a Moscou quanto ele, e sem disparar um tiro. A Ucrânia é o Afeganistão de Putin.