ANTÔNIO RANGEL BANDEIRA - Sociólogo, ex-consultor da ONU e do Viva Rio, autor de Armas para quê? (Editora LeYa)
O Senado está para votar o Projeto de Lei (PL) 3723/2019 que acaba com o Estatuto do Desarmamento. Nossa lei de armas é respeitada a nível internacional, considerada democrática e eficiente, e serviu de inspiração para a reforma da lei de oito países. Segundo cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 15 anos o Estatuto salvou a vida de 275.476 brasileiros. Um resultado espetacular. A medida mais eficaz já tomada para a redução das mortes por arma de fogo. Mas a gananciosa indústria de armas quer revogá-la. Vejamos algumas das propostas do PL e do seu relator.
O pretexto é "dar segurança jurídica para os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores)", multiplicando o número de armas que podem comprar, permitindo-lhes adquirir até fuzil de guerra, fabricar munição própria e o direito de andar armados. A nossa lei proíbe o porte de arma, concedido apenas para quem está com risco de morte, tendo reduzido drasticamente os homicídios. Para burlar a proibição, o PL permite atiradores e caçadores andarem armados de suas casas até o local da atividade, com a desculpa de que, assim, não terão suas armas roubadas. Ora, na Argentina os clubes de tiro têm cofres, de forma que atiradores não ponham em risco os transeuntes.
Quanto a roubar suas armas, as verdadeiras armas esportivas são de pequeno calibre, não interessa ao assaltante. Mas, no Brasil, permite-se que atiradores usem até fuzis de guerra, armas não admitidas nas competições olímpicas, onde busca-se a precisão dos tiros de pequeno calibre, e não a potência. Resultado: podendo treinar com armas de grosso calibre, comprar até 60 armas por ano, e diante da possibilidade de andarem armados, os clubes foram invadidos por hordas de milicianos, narcotraficantes e militantes bolsonaristas, para constrangimento dos verdadeiros esportistas. Os clubes de tiro viraram um grande negócio, tendo o seu número aumentado de 871 para 1.644, dobrando no governo Bolsonaro. Formam-se grupos paramilitares fortemente armados, dispostos a introduzir a violência na política.
Os verdadeiros CACs estão preocupados com essa invasão de sua categoria, que, com o tempo, será associada a delinquentes, como sucedeu no Reino Unido. Em 1996, um atirador esportivo, Thomas Hamilton, teve seu pedido de emprego negado em uma escola para crianças em Dunblane, Escócia. Revoltado, o atirador fuzilou 16 crianças de 5 e 6 anos. O choque levou a atividade de atirador esportivo a ser proibida, o uso de armas de fogo por civis foi banido em todo o país e a tradicional caça à raposa proibida.
O relator do PL incorpora a concessão do porte de armas para 12 categorias, como advogados, que nada têm a ver com CACs, revelando seu verdadeiro propósito. O coração do Estatuto do Desarmamento é a proibição de que civis andem armados e de que possam adquirir armamento de uso militar. O PL fere de morte a nossa lei ao abrir a porteira para meio milhão de CACs.
A CPI da Câmara sobre Tráfico Ilícito de Armas descobriu que instrutores de clubes de tiro produziam munição com máquinas de recarga e as vendiam, inclusive para o PCC. Na ocasião, a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), órgão do Exército, declarou a necessidade de proibir essas máquinas para civis. Entretanto, o PL estende o seu uso dos clubes para os CACs. O perigo se agrava ao constatarmos que munição recarregada não pode ser rastreada. Sem rastreamento não se teria chegado aos autores dos assassinatos da juíza Patrícia Acioli e da vereadora Marielle Franco. Outra proposta do PL acaba com a marcação de armas e munições, o que impedirá seu rastreamento em caso de crimes.
O PL quer que vigilantes privados usem armas de grosso calibre. A CPI sobre Desvio de Armas, da Assembleia do Rio, comprovou que uma das maiores fontes de armamento para o crime organizado são Empresas de Segurança Privada. Constatou que cerca de 10 mil armas tinham sido desviadas de algumas dessas empresas para o crime no Rio. Eram de calibre 38. Quer-se aumentar o calibre das armas a serem desviadas?
O senador Flávio Bolsonaro, que comanda a Bancada da Bala no Senado, disse: "Quer a prova real de que armas salvam vidas? O presidente da Ucrânia concedeu porte de arma para a população civil". Seu oportunismo mistura guerra com política de segurança pública em tempo de paz. Segue o exemplo do pai, que também com a desculpa da guerra, pretende expulsar os indefesos índios de suas terras ancestrais pretextando a exploração de potássio. É uma característica do covarde atacar os frágeis, como se viu com o deputado "Mamãe Falei", acossando ucranianas desesperadas, "fáceis porque são pobres".
Segundo enquete IPEC, 88% dos brasileiros são contra o aumento do número de armas para os CACs. Desprezando essa vontade popular, os senadores podem atender à pressão da indústria de armas, aos falsos CACs, e condenar milhares de brasileiros à morte. Ou podem preservar nosso Estatuto do Desarmamento e votar pela vida!
Saiba Mais
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.