ANDREA CIOLETTE - Diretora de Saúde Feminina da Organon
É preciso falar sobre autonomia corporal das mulheres. Apesar do avanço na luta por espaços na sociedade e da ocupação de posições cada vez mais relevantes, ainda há muito o que caminhar. Por exemplo, nos cuidados com a saúde. Uma sociedade estruturada em pilares machistas e patriarcais induz a mulher a colocar os cuidados pessoais em segundo plano, seja na atenção à saúde, seja mesmo no planejamento reprodutivo. Essencialmente, ela perde o direito a fazer suas escolhas.
Não é possível naturalizar um cenário como esse. Mulheres saudáveis são a espinha dorsal de uma sociedade próspera, estável e resiliente. No entanto, não é de hoje que elas são levadas a negligenciar cuidados com a saúde e o bem-estar por causa de uma estrutura social que delimitou funções de acordo com o gênero, cabendo à mulher os cuidados com casa e filhos.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), referentes a 2019, mostram que, mesmo trabalhando fora de casa, as mulheres dedicam oito horas a mais do que os homens a atividades domésticas, principalmente no cuidado com os filhos. O mesmo ocorre nos afazeres do lar, que também consomem oito horas a mais do público feminino: mais tarefas, menos tempo para cuidar da saúde.
Com a pandemia, a situação se agravou. Aumentou a sobrecarga nas funções domésticas e no cuidado com os familiares, enquanto o trabalho remoto ampliou o tempo consumido pela vida profissional. De acordo com um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas Mulheres, em 2021, 92% das mulheres consultadas consideraram que o tempo dedicado aos filhos aumentou muito e 85% delas tiveram a mesma percepção em relação às tarefas rotineiras do lar. Além de um esgotamento emocional, essa situação também provocou um abandono nos cuidados de saúde. Na mesma pesquisa, 64% das mães admitem que o tempo dedicado ao autocuidado diminuiu muito.
O descuido de si em prol dos outros vem cobrando um preço alto. No último ano, o número de mamografias realizadas no Brasil caiu 26% em relação a 2019, ano pré-pandemia. Apesar de o cenário de 2020 ter sido pior, não há motivos para comemorar. O exame é essencial para detecção e prevenção do câncer de mama, que é o tipo de câncer que causa mais mortes na população feminina brasileira.
Além dos prejuízos à saúde física e mental, a pandemia também evidenciou que os movimentos pela autonomia e empoderamento feminino ainda não foram suficientes para diminuir a exposição das mulheres ao assédio sexual e à violência doméstica. Ter protagonismo em relação ao próprio corpo é para poucas.
No mundo, de acordo com o documento Meu Corpo Me Pertence, do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), quase metade das mulheres (45%) não tem autonomia sobre o corpo. Isso significa dizer que elas não têm o poder de decidir quando procurar atendimento de saúde, mesmo os serviços de saúde sexual e reprodutiva, para receber orientação sobre o uso de métodos contraceptivos. Tampouco são ouvidas pelos maridos e parceiros quando dizem não às relações sexuais.
O resultado não poderia ser diferente. Um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres é a gravidez não planejada. Para ficar no exemplo do Brasil, pesquisas indicam que mais de 55% das gestações não são planejadas. A estatística inclui casos de mulheres que não queriam engravidar ou que gostariam de ter esperado por mais tempo para isso. Falta-lhes muitas vezes conhecimento e acesso a métodos contraceptivos, principalmente entre as brasileiras com mais dificuldades econômicas. Entre as adolescentes, esse número é ainda maior: 66% das que engravidam não tiveram a intenção.
As brasileiras têm, em grande medida, a compreensão de que a gravidez não planejada representa um obstáculo para seu crescimento pessoal. Um levantamento da B2Mamy, a pedido da Organon, mostra que as mulheres das classes C e D entendem que a gravidez não planejada cria dificuldades para que elas rompam o ciclo da pobreza. Ter um filho sem o devido planejamento compromete, em muitos casos, a possibilidade de ela continuar os estudos e conseguir melhores trabalhos.
O empoderamento feminino só se fará completo quando a mulher puder tomar, de fato, todas as decisões relativas ao seu corpo: dos cuidados com saúde ao planejamento reprodutivo, ainda tão pouco difundido e adotado no Brasil. Permitir que a mulher possa conduzir a vida de forma mais independente e próspera depende do acesso à informação, a tratamentos e a orientações médicas, ou mesmo a métodos contraceptivos. Mas também do apoio da família, do parceiro ou da parceira, assim como das instituições públicas e privadas. É uma tarefa coletiva e urgente.
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