KAREN FRIEDRICH - Biomédica doutora em saúde pública, servidora da Fiocruz e da Unirio e membro do GT saúde e ambiente da Abrasco
MARILENA LAZZARINI - Engenheira agrônoma, presidente do conselho diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)
Enorme responsabilidade pesa sobre o Senado após decisão abominável da Câmara a favor do PL nº 6299/2002, o "pacote do veneno", em fevereiro último, apoiado pelo governo. Instituições científicas, Anvisa, Ibama, Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer (Inca), além de centenas de organizações da sociedade, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e do Trabalho se manifestaram contra.
Espera-se que o Senado leve em conta a gravidade da situação atual e o absurdo que representa o afrouxamento do marco legal, como propõe o PL. Nas duas últimas décadas, o uso de agrotóxicos cresceu exponencialmente, sem aumento proporcional da área cultivada; e o governo liberou mais de 1.500 agrotóxicos e componentes afins, incluindo vários proibidos por serem portadores de riscos à saúde e ao ambiente. Mais de 80% dos princípios ativos aqui usados não têm autorização em pelo menos três países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Agências reguladoras internacionais consideram mais de 60% deles cancerígenos, desreguladores hormonais ou reprodutivos.
A lei em vigor, de 1989, proíbe o registro de produtos com potencial de causar malformações fetais, câncer, mutações genéticas e distúrbios hormonais. No entanto, há um enorme passivo de moléculas registradas antes da sua vigência e que, mesmo diante de fartas evidências científicas sobre seus efeitos nocivos, nunca passaram por uma revisão. A forte pressão de setores interessados nesse status quo explica essa inércia, ajudada por carências de laboratórios, fiscalização, sistemas informatizados de receituários agronômicos, dados de comercialização e notificação de intoxicações. Mas isso poderá piorar, pois o PL quer excluir tal proibição, estipulando que caberá ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) dar a palavra final se os riscos previstos são aceitáveis ou não.
Doenças como o câncer ou alterações hormonais são causadas pela exposição a quantidades pequenas presentes nos alimentos e na água que consumimos diariamente. Pesquisa do Idec encontrou, em 2021, resíduos de agrotóxicos em 16 de 27 alimentos ultraprocessados, consumidos por crianças, sendo que, em um deles, foram detectados oito resíduos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) detectou, em 2019, resíduos na maior parte dos alimentos in natura analisados e, em mais de 30%, flagrou misturas dessas substâncias, cujos danos são ignorados pelas autoridades. Em 1% das amostras, os níveis de contaminação eram tão altos que poderiam desencadear, logo após o consumo, sintomas agudos como diarreia, náusea, vômito e dor de cabeça.
O atual arcabouço regulatório precisa ser aperfeiçoado, não afrouxado, como propõe o PL, que quer concentrar a decisão sobre o registro ou proibição de um novo produto no Mapa, sendo que hoje ela passa obrigatoriamente pela Anvisa e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O Mapa poderá conceder registro temporário, caso as análises não se concluam em dois anos, bastando, para isso, que o agrotóxico seja usado em três dos 37 países membros da OCDE, sem importar se as condições de uso aqui forem mais precárias. Afrontando a Constituição, quer retirar de estados e municípios o poder de legislar de forma mais restritiva, mesmo que prevaleçam características locais contraindicando o uso de algumas substâncias ou práticas, como a pulverização aérea, proibida em alguns municípios e no estado do Ceará.
Enquanto países europeus, Japão e Estados Unidos fazem revisões periódicas dos produtos em uso e retiram do mercado os mais perigosos, o Brasil será um paraíso para as corporações transnacionais de agroquímicos, favorecidas em bilhões de reais por ano com a isenção de vários impostos, cujos lucros serão turbinados sem ter que investir no desenvolvimento de moléculas mais modernas e seguras para os problemas agronômicos locais. Outros bilhões de reais serão gastos anualmente para tratar as vítimas intoxicadas por essas substâncias e mitigar os danos à biodiversidade, pagos pela sociedade brasileira.
O agronegócio brasileiro que se projetou dentro do atual arcabouço legal vai perder. Países importadores em sua maioria são pressionados por cidadãos consumidores exigentes, cujas organizações representativas inclusive monitoram a tramitação do PL. Trata-se de um poderoso lobby contra a ciência, em que só ganharão os fabricantes de veneno. O relator do PL na Câmara, ao celebrar a votação disse, com desfaçatez, que "quem vai ganhar com esse projeto é o consumidor final e a sociedade brasileira".
A sociedade brasileira anseia por comida no prato, segura, saudável e produzida sem impacto ambiental. Senadoras e senadores, de que lado estão? Da saúde e da rica biodiversidade brasileira ou do lobby da morte e do veneno?
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