A pandemia de covid-19 tem números de vítimas que escandalizam todo o mundo, mas uma outra epidemia, essa mais silenciosa, se escondeu em lares pelo país durante os meses de distanciamento social: o isolamento muitas vezes trancou em um mesmo ambiente agressores e vítimas de violência doméstica. No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública expõem um pouco desse diagnóstico, ao lado de um alerta preocupante: a realidade pode ser ainda mais cruel do que revelam as estatísticas oficiais.
Em antecipação de dados compilados para o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, citando números de secretarias da área nas 27 unidades da federação, o Fórum constata que, no ano passado, o Brasil registrou pelo menos uma vítima de feminicídio a cada 7 horas, ou o assustador total de 1.319 mulheres assassinadas, principalmente por companheiros e ex, ao longo de 2021.
Em um recorte que considera apenas o período entre março de 2020, marco do início da pandemia de covid-19 no país, e dezembro de 2021, último dado disponível, foram registrados 2.451 feminicídios no Brasil, segundo a mesma fonte. Não se trata, é preciso frisar, do total de homicídios contra mulheres, o que já seria preocupante, mas apenas daqueles crimes motivados pela condição feminina, conforme definição legal fixada em 2015. As razões para esse tipo de violência letal normalmente são associadas a sentimentos de ódio, desprezo ou de perda do controle e da sensação de "propriedade" sobre a mulher.
Os dados mensais de feminicídios no país de 2019 a 2021 mostram ainda aumento de casos entre fevereiro e maio de 2020, período em que as medidas de isolamento social foram mais rígidas. Em 2021, em que pese a discreta redução de 2,4% no total de vítimas desse tipo de crime em relação ao ano anterior, a taxa nacional de feminicídios a cada 100 mil mulheres fechou o ano em 1,22. Chama a atenção o fato de que, entre as 27 unidades da federação, apenas sete ficaram abaixo desse patamar. No extremo oposto, destacam-se negativamente taxas elevadas em estados como o Tocantins (2,7), Acre (2,7), Mato Grosso do Sul (2,6), Mato Grosso (2,5) e Piauí (2,2).
Unidades da federação como Minas e Distrito Federal ficam acima da média nacional, mas em uma faixa intermediária, com índice de 1,4 morte/100 mil. Porém, o DF lida com alta de 47,1% nesse tipo de crime em relação ao ano anterior, terceira maior variação percentual no país, atrás apenas do Tocantins ( 144,4%) e Rio Grande do Norte ( 53%), segundo a mesma fonte
Os números gritam por si só. Mas podem mascarar uma realidade ainda mais grave, escondida por trás do desafio de tipificar corretamente o feminicídio, incluído no arcabouço legal do país pela Lei 13.104, de 9 de março de 2015. Essa classificação fica a cargo da Polícia Civil, e esbarra em critérios relativamente vagos, que incluem a definição de morte por "menosprezo ou discriminação à condição de mulher", o que dá margem a uma série de interpretações e, por consequência, à subnotificação.
Aperfeiçoar a legislação para tornar mais claros critérios que definem o feminicídio possibilitaria um retrato mais fiel dessa realidade, e, portanto, ajudaria a refinar políticas públicas para a área. Mas, antes de tudo, são necessárias medidas emergenciais para estancar a sangria que tira vidas, especialmente em crimes motivados pela condição de gênero.
Algo que exige mobilização social, comprometimento das forças de segurança e dos poderes encarregados de criar, executar e fazer cumprir as leis. Nesse sentido, cortes nas verbas federais destinadas ao combate à violência contra a mulher e baixa execução orçamentária na área, como denunciados no Dia Internacional da Mulher em nota técnica do Instituto de Estudos Socioeconômicos — ONG especializada em orçamento e direitos humanos — não são compatíveis com a urgência que o tema exige. Menos ainda com sua gravidade.
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