FÁTIMA SOUSA -Enfermeira sanitarista, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília. Doutora honoris causa pela Universidade Federal da Paraíba e pós-doutora pela Université du Québec à Montréal
Quais as implicações com a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 1613/2021, que permitem a incorporação de medicamentos cuja indicação de uso seja distinta daquela aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)? Quase um mês e meio após os ataques do presidente à idoneidade da Anvisa em suas decisões, a Câmara aprova o PL nº 1613/2021, que permitirá ao Ministério da Saúde incorporar tecnologias em saúde (entre elas, medicamentos, vacinas e equipamentos médicos), com indicações diferentes daquelas aprovadas pela Anvisa. O texto não trata apenas desse assunto, há ainda um fato que pode impactar negativamente o acesso a tecnologias. Explico.
Quando se estabelece que as metodologias de avaliação econômica terão regulamentação, nas quais também serão estabelecidos indicadores e parâmetros de custo-efetividade em combinação com outros critérios, existe um risco de determinar um teto, um valor limite (limiar) de custo-efetividade para a inclusão de tecnologia no Sistema Único de Saúde (SUS). Isso significa determinar valor máximo, que é resultante de uma razão entre um custo monetário (em reais, por exemplo) no numerador e medida de ganho em saúde, no denominador (anos de vida ajustados pela qualidade). Isso significa que, se a tecnologia em questão for acima desse limiar, ela não será incorporada no SUS. Em um ambiente de teto de gastos, com constrição de recursos na área de saúde e todo um cenário de desfinanciamento do SUS, a regulamentação da avaliação econômica em saúde é mais um elemento para o desmonte do maior sistema de saúde público e gratuito do mundo.
Apesar disso, o foco da ementa da PL é a criação da exceção, para a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) incorporar medicamento ou produto com indicação de uso, que seja distinta daquela aprovada no registro pela Anvisa, mediante demonstração das evidências científicas sobre a eficácia, acurácia, efetividade e a segurança. Existem dois aspectos a serem observados:
1) Falta de interesse do detentor do registro fora do Brasil em solicitar a autorização da Anvisa para comercializar tal medicamento, com tal indicação no Brasil. Para tanto, cito dois exemplos: um caso clássico é o medicamento bevacizumabe, que foi registrado para câncer do cólon. Tal medicação possui eficácia comprovada para a degeneração macular relacionada à idade (DMRI — uma doença que pode causar cegueira). Entretanto, a detentora do registro não solicitou o pedido de nova indicação terapêutica, por questões mercadológicas. A tecnologia usada para a DMRI, o ranizumabe, tem o custo de tratamento extremamente alto (cerca de 6x, no ano de 2008). Bevacizumabe foi incorporado pela Conitec mediante autorização excepcional da Anvisa. A partir de articulação política e técnica, a Anvisa e a Conitec construíram um caminho para que o acesso às tecnologias fosse garantido, considerando aspectos de eficácia, segurança e qualidade. Coordenação que inexiste nesse governo federal.
2) O segundo aspecto a se analisar nesse PL é que a Conitec não tem a prerrogativa de avaliar questões de qualidade da tecnologia em saúde (e não o fará, inclusive). Tal avaliação é realizada pela Anvisa, que também aprecia questões de qualidade nas matérias-primas, no processo de fabricação e no produto final. Sem essa análise, a tecnologia pode não alcançar a tal efetividade que tanto se fala nessa proposta aprovada.
Uma curiosidade desse processo é sua tramitação na Câmara, depois de várias vezes ter sido levado a plenário em 2021, sem sua apreciação, retorna seis meses depois, em meio a uma cortina de fumaça causada pela invasão Rússia na Ucrânia, após declarações depreciatórias do presidente em relação à Anvisa. E esse PL, a quem interessa?
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