João Marcos Braga - Advogado em Brasília, sócio fundador do escritório Braga de Melo Advocacia Criminal
Num dia como outro qualquer, num sinal de trânsito, surgiu uma epidemia de cegueira. De repente, bradou um motorista: "Estou cego". Daí em diante, o "mal branco" se alastrou pela sociedade. José Saramago mostra, em Ensaio sobre a cegueira, um mundo de cegos, extremamente violento, escatológico, onde os seres humanos vivem buscando a sobrevivência e a satisfação de interesses próprios. Há, no livro, episódios de estupro, morte e todo tipo de outras crueldades. Mas há também momentos de solidariedade, amor e é só através da união, da boa convivência e da harmonia que os cegos conseguem sobreviver.
Talvez pelo fato de que "as pessoas acabam por habituar-se a tudo", a realidade de um mundo sem visão torna-se, aos poucos, um mundo "normal" no livro. Saramago fala em um ser humano com segunda pele, "a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra". Mas também reconhece que, "mesmo nos males piores é possível achar-se uma porção de bem suficiente para que os levemos, aos ditos males". Em que grau a realidade narrada na obra de Saramago se distingue daquela em que vivemos? Em nenhum.
Pelo contrário, a cegueira, no autor português, é um despertar, para a humanidade, suas fragilidades, violências, crueldades e todas as suas idiossincrasias. É uma epifania para a vida, tal como ela é, em todo o mundo. Tanto assim é que quando as pessoas se curam da cegueira, um dos personagens afirma: "Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem".
A realidade é, sem dúvida, bastante cruel e muitas vezes não notamos isso. Não à toa que Eugênio Raúl Zaffaroni afirma que vivemos em uma realidade paranoide. Em A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar, o autor argentino demonstra como a história da humanidade e do seu desenvolvimento está intimamente relacionada com os massacres e com a produção em massa de cadáveres.
O "desenvolvimento" das colônias apenas ocorreu com uma verdadeira carnificina dos povos originários. Também o modelo de plantation só funcionou com o extermínio de diversas vidas negras. A produção de mortes está intimamente relacionada com a manutenção e o exercício do poder. Afirma Zaffaroni: "Os massacres dentro do território quase sempre foram um instrumento de consolidação do poder do grupo hegemônico, que era, ou se sentia, frágil". E a produção em massa desses cadáveres passa, hoje, pelo racismo estrutural, que é, como bem aponta Achille Mbmebe, "uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, 'este velho direito soberano de matar'".
Maíra de Deus Brito denuncia, por sua vez, o genocídio da população negra, especialmente no Rio de Janeiro. Descreve esse massacre moderno a partir da perspectiva de mães que perderam seus filhos por atos de violência. A autora desenvolve importante tarefa ao lançar luz sobre a cegueira que há sobre o extermínio imposto, ainda hoje, à juventude negra e pobre do Brasil. Afastando o mito da democracia racial no Brasil, a professora assim discorre: "Clóvis Moura chega a uma conclusão de extrema relevância: há uma diminuição do semento preto e pardo na população brasileira, mas tal processo não se dá por meio de casamento interétnico, como prega o mito da democracia racial. O embranquecimento acontece porque eles são a maioria na faixa da marginalidade, do subemprego e da miséria, fatores que acarretam em altos índices de mortalidade".
O recente e chocante assassinato do jovem congolês Moïse Kabagambe é um dos não raros episódios do extermínio da população negra no Brasil, em geral, e no estado do Rio de Janeiro, em particular. A maneira brutal como a morte foi executada: em praça pública, a pauladas, apenas por ter ele cobrado o dinheiro fruto de seu trabalho demonstra, de forma muito clara, que o racismo está presente em toda a esfera de exercício do poder.
O racismo está presente na relação de trabalho. Moïse prestou um serviço. Deveria ser pago por isso. Apenas pelo racismo, o "empregador" se achou no direito de não pagar o valor devido pelo trabalho do "empregado". Como aponta Mbembe: "A humanidade de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade de seu senhor. Historicamente, no Brasil, a população negra sempre foi afastada dos meios de produção e da efetiva integração socioeconômica. Há, nesse sentido, a publicação da Lei de Terras, que "embarreirou o acesso de negros à posse de terras no Brasil".
O racismo está presente na relação entre o estrangeiro e o brasileiro até hoje. Moïse era um congolês. Possivelmente, se fosse europeu, estaria vivo. Como aponta Zaffaroni: "Se o estrangeiro é muito parecido, é necessário elaborar a diferença, criar um estranho, o estrangeiro, porque o estranho sempre gera suspeita e desconfiança, abre espaço para a paranoia, que é onde os massacradores podem penetrar com sua ideologia e convertê-los em inimigos". Não podemos esquecer que o Brasil adotou ativamente políticas de embranquecimento da população. Getúlio Vargas editou o Decreto-lei nº 7.967, que "atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional".
O racismo está presente na forma de execução de Moïse Kabagambe. A morte a pauladas, numa das regiões mais nobres do país, demonstra um ato absolutamente cruel, negativo de toda a humanidade da vítima. Apenas pelo racismo como tecnologia que dita "quem pode viver e quem deve morrer" se explica e reificação de Moïse, a ponto de ele ser morto de uma maneira tão brutal. Além disso, essa morte mostra a crença na impunidade. Há, em curso, um verdadeiro massacre de jovens negros e pobres no Brasil. Muitos desses casos não são esclarecidos. Os dados são alarmantes:
Em 2015, 31.264 jovens entre 15 e 29 anos foram vítimas de homicídios no Brasil. Se contabilizarmos o número de mortos entre 2005 e 2015, encontramos o assustador dado de 318 mil jovens assassinados. Os números ficam ainda mais preocupantes quando aplicado o recorte de gênero e raça. Em 2015, 47,8% dos mortos foram homens jovens e, em um intervalo de 10 anos, a taxa de homicídio de negros cresceu 18,2%, enquanto a taxa de não negros caiu 12,2%.
A morte de Moïse Kabagambe é, nesse contexto, um caso de racismo como tecnologia de necropolítica. Essa morte tira do pano de fundo de silêncio uma espécie de genocídio ainda hoje em curso no nosso país. Ela é um despertar para a realidade, demonstra que o racismo está em todas as esferas de exercício do poder. Por meio dessa tragédia, podemos perceber que quanto à morte de negros no Brasil ainda somos cegos, que vendo não veem.
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