José Horta Manzano - Empresário e blogueiro
Na quinta-feira em que escrevo, a Europa acordou sobressaltada. A ameaça em que ninguém queria acreditar se realizou. O pesadelo virou realidade. Já de manhã, jornais e tuítes confirmam: estão acontecendo coisas que a gente imaginava que tivessem ficado nos livros de história. Estourou uma guerra no continente. E não é uma guerra fria como a que durou de 1945 até o desmanche da União Soviética. A que estalou hoje é quente, com aviões, mísseis e tanques em movimento.
Imagine o distinto leitor, por um instante, que instalações industriais estivessem sendo alvo de mísseis em Salvador, em Belo Horizonte, em Porto Alegre, no Rio, ou em São Paulo. Imagine que bases aéreas como as de Anápolis e Santa Cruz estivessem sendo destruídas por bombas vindas não se sabe de onde, tudo ao mesmo tempo. Imagine que os principais aeroportos do país estivessem sofrendo o mesmo destino. É o que está acontecendo, no momento em que escrevo, na Ucrânia — país tão longe do mundo e tão perto da Rússia.
É a primeira vez, desde o fim da última guerra, que um grande país está sendo atacado por uma potência nuclear. Na Europa, em extensão territorial, a Ucrânia fica em segundo lugar, só perdendo para a própria Rússia. De 1945 para cá, houve, sim, incursão de potências nucleares em pequenos países. Em 1983, os EUA invadiram Granada, minúsculo país caribenho. Em 2008, a própria Rússia interveio na Ossétia do Sul, pequenina fração da Geórgia. Que um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU ataque militarmente um país de área maior que a de 25 países europeus reunidos é pesadelo que, até poucas semanas atrás, não estava nos radares.
Curiosamente, essa Rússia gigantesca que mostra os músculos e assusta o mundo tem um PIB menor que o do Brasil. O PIB russo equivale, grosso modo, ao da Espanha. Isso demonstra o esforço especial que o governo tem feito em favor da despesa militar. A aritmética não falha: quando se investe demasiado aqui, há de faltar ali. Não há milagre. Os serviços públicos essenciais do país — educação, saúde, transporte, segurança pública, infraestrutura — hão de sentir o baque.
Os acontecimentos desta madrugada nos dão interessantes informações. A insistência de Biden, que, há semanas, vinha reafirmando vigorosamente que o ataque da Rússia era iminente, prova que os serviços americanos de espionagem funcionam. É de crer que haja infiltração de informantes no entourage próximo de Putin.
Será interessante observar agora a reação da China. Manterá o apoio a Moscou? De olho em Taiwan, ilha considerada "província rebelde", Pequim há de estar anotando cada detalhe da reação mundial ao ataque russo. Do que acontecer nas próximas semanas, dependerá a decisão de invadir Taiwan num futuro próximo.
Todos os países europeus, com a notável exceção de uma Bielo-Rússia enfeudada a Moscou, condenaram a invasão militar da Ucrânia nos termos mais vigorosos permitidos pela linguagem diplomática. Será interessante acompanhar a reação do governo brasileiro, que não se manifestou até o momento em que escrevo.
Há que ter em mente a intempestiva viagem de Bolsonaro à Rússia semana passada. Mais que isso, é preciso levar em consideração sua irresponsável afirmação de solidariedade para com aquele país. À vista disso, o Itamaraty está, como se costuma dizer, metido numa saia justa. Estamos do lado errado da História. Como pode o Brasil condenar a agressão militar russa à Ucrânia se, apenas uma semana antes, nosso presidente se declarava solidário à causa russa? Para contornar a situação, será preciso um contorcionismo verbal.
Vladimir Putin tornou-se dirigente da Rússia há 22 anos. Sua permanência no topo não teria sido possível sem ampla cooptação da intelligentsia do país e da oligarquia enriquecida na esteira do desmonte da União Soviética. O sistema é vertical e funciona em circuito fechado. Putin depende da elite cooptada, e esta só sobrevive graças a ele.
Embora mais tênue, o risco de instauração de semelhante sistema existe entre nós. Temos, no poder, um candidato a ditador autocrata. É bom tomar cuidado. Se bobear, o bicho pode pegar.