Saudade é faca que tange o coração e faz rio revolto na alma. Saudade é a ausência da presença, o sorriso que se apaga, a mão que não mais afaga, o olhar que se perde. Saudade é o estar vazio, o pôr-do-sol em preto e branco, a cadeira desocupada, esquecida, no canto da mesa. O copo vazio de cerveja. O guarda-roupas cheio de alguém que partiu. Saudade é o perfume que ficou no ar, a carícia furtiva roubada pelo imprevisto. Saudade é tristeza, é dor, é sede de amor a olhos vistos. Escrevo esse artigo na noite de domingo. Desde o início da pandemia, 626.854 brasileiros desapareceram, viraram saudade. Muitos deles faleceram, sozinhos, no ambiente frio de uma UTI, sem que pudessem se despedir de familiares. São avós, pais, irmãos, filhos. Arrancados de seus lares pela covid-19, mas também pelo vírus da inoperância do Estado, pela defesa da estapafúrdia tese da imunidade de rebanho, pela ideologia negacionista que atrasou a compra de vacinas, pelas fake news que escorrem pelas redes sociais como lama tóxica, pelos antivacina que um dia se arrependem no leito de morte.
O peso da saudade é brutal. Quantas famílias lamentam, hoje, as bodas de ouro que não mais virão, a lua-de-mel que ficou pelo caminho, o beijo na filha de 15 anos que jamais será dado, a ternura de avó que o neto não mais terá o privilégio de sentir, a caminhada até o altar que não mais será feita... Quantos sorrisos ficaram relegados ao porta-retrato... Quantos planos desapareceram como poeira ao vento... Em quantos lares, a angústia causada pela porta, que não será aberta pelo pai, que nunca voltará para casa... A tristeza da criança sem aquele abraço que conforta e acalma. O soluço da viúva, sozinha, enquanto o barulho lá fora transmite falsa ideia de continuidade.
O poeta inglês John Dryden (1631-1700) definiu com precisão o gosto amargo da saudade. "O amor calcula as horas por meses, e os dias por anos; e cada pequena ausência é uma eternidade", escreveu. O que dizer então da eterna ausência? O que dizer da morte quando, na teoria, era evitável? Tivessem as vacinas chegado bem antes. Tivessem os suprimentos de oxigênio abastecido os hospitais de Manaus. Tivessem tantos brasileiros descartado tratamentos inócuos, como a hidroxicloroquina ou ivermectina. Tivessem escolhido melhor seu representante. Tivessem apostado todas as fichas na ciência. Tivessem se informado mais por jornais e revistas, menos pelo WhatsApp.
Com o tempo, o rio revolto na alma pode se fundir ao mar. Um dia, a saudade se acalenta com a gratidão pela possibilidade de ter convivido e amado. E aquela dor lancinante se transforma, de alguma forma. Mas, vai e volta. Acompanha-nos. E segue todos aqueles que um dia choraram seus mortos na pandemia. Minha empatia e minha homenagem a centenas de milhares de mortos pela covid-19. Não é, nem nunca foi, uma "gripezinha".