Entra e sai ano, o filme se repete, com seu roteiro assustador. Basta que as chuvas cheguem com mais força para que tragédias se confirmem. Foi assim recentemente na Bahia e em Minas Gerais. E está sendo, agora, em São Paulo, onde 24 pessoas morreram nos últimos três dias e 10 estão desaparecidas. São vidas perdidas por causa do descaso. Não é possível que os responsáveis por garantir a segurança da população continuem ignorando os alertas sobre a ocupação desordenada das cidades. Nada é feito para conter esses movimentos ou, pelo menos, para garantir infraestrutura às áreas apontadas como de alto risco.
Governos precisam atuar na prevenção, mas, no Brasil, tornou-se regra agir somente depois de confirmado o desastre. Muitas das mortes registradas por enxurradas e desabamentos poderiam ser evitadas se houvesse planejamento e eficiência na gestão pública. Para as autoridades, é mais fácil fechar os olhos, muitas vezes para proteger aliados que atuam nas sombras, desmatando, grilando terras, construindo sem qualquer critério técnico, lucrando com o crime. No Rio de Janeiro, há o exemplo claro das milícias, que extorque aqueles que estão em situação de desespero, porque foram despejados por não poderem mais pagar os aluguéis. Esse quadro se agravou com a pandemia.
Todos sabem que o Brasil tem um deficit habitacional imenso, de mais de 6 milhões de moradias. E boa parte da população não tem condições de arcar com um imóvel. Sendo assim, cabe aos governantes executarem políticas que mitiguem esses problemas, seja construindo residências a preços acessíveis, seja oferecendo condições para aqueles que não podem pagar nada também não fiquem ao relento. É essa parcela mais vulnerável dos cidadãos que acaba se arriscando a morar em regiões sem as mínimas condições de segurança.
Ao longo de anos, foram muitas as promessas de programas habitacionais para dar casas dignas aos mais carentes. Infelizmente, na maior parte dos casos, os recursos públicos foram destinados a projetos movidos pela corrupção. Conjuntos residenciais foram construídos em áreas sem a mínima infraestrutura, tornando-se verdadeiros elefantes brancos. Obras superfaturadas ficaram pela metade, sendo corroídas pelo tempo. Prédios inaugurados por autoridades em busca de votos ruíram dias depois. Do que ficou de pé, parcela foi parar nas mãos do crime organizado.
Hoje, em âmbito federal, não há nenhum programa habitacional sendo tocado. O Minha Casa, Minha Vida, que ainda conseguiu dar moradia a um pequeno grupo, foi totalmente desmontado. E quem teve acesso aos imóveis simplesmente não pode arcar com as prestações por causa da combinação explosiva de alta dos juros com queda na renda. A perda de poder aquisitivo nos últimos anos, por sinal, empurrou ainda mais brasileiros para áreas desprovidas de qualquer serviço prestado pelo Estado. Muitos deles, certamente, serão as vítimas das próximas chuvas.
A pergunta que todos se fazem ecoa alto: se, no estado mais rico do país, a tragédia não foi evitada, imagine o que pode ocorrer em regiões mais carentes? Não se espantem se, nas eleições que se aproximam, candidatos vierem com propostas de moradias para os mais pobres, de melhorias nas condições de vida das cidades. São mestres na arte da enganação. Depois de eleitos, vão dedicar toda a energia para projetos que garantam benefícios aos privilegiados de sempre. Com a cara de pau que lhes é característica, quando a chuva chegar e matar mais uma leva de cidadãos, dirão que sentem muito. E tudo se repetirá no ano seguinte. Esse é o retrato do Brasil que insiste em manter os dois pés fincados no atraso.