Eloi Ferreira de Araújo - Ex-ministro da Igualdade Racial, ex-presidente da Fundação Palmares, advogado e embaixador do movimento Cotas Sim
Estamos em meio a um turbilhão de tragédias naturais, e a causada pelo vírus, que vêm vitimando milhares de pessoas, paralisando as economias locais e nos entristecendo diariamente. Elas têm relação direta ou indireta com as mudanças do clima. Também coloca a nu o resultado do uso indiscriminado dos recursos naturais, das queimadas e do desmatamento descontrolado para fins como do agronegócio, para mineração e mesmo para industrialização. Salta aos olhos o fato que poderiam ser evitadas ou terem seus efeitos minimizados com políticas públicas de prevenção, fundadas na ciência e sem negacionismo.
Essas tragédias recentes provenientes de muitas chuvas aconteceram em Minas Gerais, São Paulo, Bahia e, mais recentemente, em Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro. Em todos os casos, escancararam as graves desigualdades que o Brasil ainda experimenta, como consequência do triste passado de escravização de africanos e de seus descendentes. Não é coincidência que a maioria da população vulnerável, em razão das ocupações de encostas, da falta de saneamento e de moradias precárias em locais insalubres, seja constituída de afrodescendentes. É a parcela da população mais exposta à ausência de políticas públicas de habitação, sendo muitas vezes obrigada a condições de vida indignas, e, sobretudo, à falta de mobilidade social.
O acesso à educação é a principal ferramenta para a promoção da mobilidade social e do desenvolvimento. Entretanto, no Brasil, a mobilidade social sempre foi dificultada à população de afrodescendentes. Com a Constituição cidadã, a garantia da educação pública para todos e todas deu um salto, mas o acesso ao ensino superior apenas experimentou democratização com a implementação da política de cotas para afrodescendentes. Antes delas, a presença de pessoas negras nas universidades era mínima, ainda que na composição da população brasileira seja cerca de 55% de toda a nação.
A existência de cotas não é, de forma alguma, novidade no Brasil. Na década de 1960, foi aprovada a implementação de um sistema de cotas no ensino superior por meio da adoção da chamada "lei do boi", que reservava 50% das vagas dos cursos de ciências agrárias para os filhos de proprietários de terras. Essa legislação, nitidamente, visava apenas à manutenção do status quo do latifúndio e, por consequência, trabalhava para a preservação do modelo de desigualdade brasileiro, tanto no que tange ao acesso ao ensino superior, quanto ao acesso à terra. Jamais se ouviu ou se leu, contudo, uma linha de críticas àquelas cotas, que existiram por quase vinte anos no sistema de ensino superior brasileiro.
Ao longo dos 10 anos da adoção das cotas raciais no ensino superior, na forma prevista pelo Estatuto da Igualdade Racial, as universidades públicas brasileiras viveram uma revolução democrática, que levou um pouco de cor e de afrodescendência aos bancos universitários. Porém, ainda há muito a ser resolvido, e a gritante desigualdade evidenciada nas tragédias recentes denuncia. A lei das cotas raciais precisa ser revisada neste ano, quando completa dez anos de sua vigência. As cotas como política de ação afirmativa são imprescindíveis para que o Brasil continue sua caminhada rumo a uma verdadeira democracia, que apenas existirá quando houver igualdade de oportunidades para todos e todas.
As cotas são um avanço civilizatório e humanitário, principalmente em um contexto em que as tragédias decorrentes da mudança do clima e sanitárias continuarão a ocorrer, sendo necessário, mais do que nunca, que todos e todas tenham acesso a uma vida digna, para que seja reduzido o número de vulneráveis. Assim, a mobilidade social poderá ser uma possibilidade real e não uma exceção. Portanto, a renovação da vigência das cotas raciais é imprescindível para o Brasil.
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