Escravidão

Artigo: Segunda abolição

Correio Braziliense
postado em 15/02/2022 06:00
 (crédito: maurenilson freire)
(crédito: maurenilson freire)

André Gustavo Stumpf - Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)

Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, explodiu em Salvador a maior revolta de negros escravizados já ocorrida no Brasil, a revolta dos Malês. O termo vem da palavra imalê, que, no idioma iorubá, significa muçulmano. O levante, que teve a participação ativa de mais de 600 escravos, foi planejado com antecedência para ocorrer no final do Ramadã, mês sagrado para os praticantes do Islã. Os africanos escolheram o dia da festa conhecida como Lailat al-Qadr, traduzida como Noite da Glória, que relembra o momento em que o Corão foi revelado a Maomé.

Salvador, na época, tinha cerca de 65 mil habitantes, dos quais apenas 20% eram brancos. Foi a capital da colônia portuguesa no Atlântico Sul até a chegada de D. João ao Brasil, que depois transferiu o centro político e administrativo da colônia para o Rio de Janeiro. Naquela época, Salvador era um dos mais importantes portos de receptação de negros escravizados do país. Os escravos vieram nos primeiros momentos de Angola e países da região. Ou seja, do sul da África.

A participação dos africanos na formação brasileira foi tão intensa que no episódio da independência ocorreu uma tentativa de promover a liberdade de Angola e Brasil como se fossem um só país. O objetivo não revelado era transformar o tráfico negreiro em negócio interno. Não deu certo. Mas os primeiros dirigentes brasileiros sabiam que, sem Angola, não haveria Brasil.

Os negros que vieram de Angola e região (haussás) eram analfabetos, fortes, com traseiro avantajado. Eram calipígios. Foram utilizados preferencialmente na agricultura. Como provinham das tribos bundu, logo foram chamados de bundudos. Daí a palavra bunda para designar parte determinada do corpo humano. Não há definição equivalente em francês, espanhol ou inglês.

Os negros originários da região do Benim, norte da África, ao contrário, eram magros, retilíneos, alfabetizados em árabe e, naturalmente, propensos a trabalhar no comércio. Os negros chamados de nagô falavam o idioma iorubá. Em Salvador, foram utilizados em serviços urbanos de apoio a seus patrões. Não raro, eram mais cultos do que seus senhores. Enfim, os malês transitavam com liberdade relativa por Salvador.

Ao longo desse período, promoveram cultos muçulmanos e disseminaram sua fé, sempre de maneira cautelosa e dissimulada. Pierre Verger, em seu magnífico trabalho intitulado Fluxo e Refluxo, Companhia das Letras, analisa esse grupo com muita clareza. A relativa liberdade criou a oportunidade para que os malês organizassem a revolta com objetivo de conquistar sua liberdade, atacar símbolos católicos e criar um espaço em que as leis do Corão fossem adotadas. Uma espécie de califado baiano, ou o equivalente na época.

Os escravos rebelados vestiam abadá branco (roupa típica dos muçulmanos) e usavam amuletos com escritos do Corão em árabe, como forma de proteção. Houve traição. A repressão se preparou. As batalhas se estenderam na cidade de Salvador por mais de quatro horas e resultaram na morte de 70 africanos e nove brancos. O último confronto aconteceu em Água de Meninos. Ali, alguns escravos tentaram fugir pelo mar e se afogaram.

As punições foram prisão simples, prisão com trabalho, açoite e morte. Houve casos de africanos sentenciados a sofrer 1.200 chibatadas, 16 condenados à morte, quatro foram executados. A repressão foi muito forte. Havia o temor que ocorresse no Brasil o acontecido no Haiti, primeiro país das Américas a se tornar independente. Escravos se revoltaram contra o domínio francês (1804) e conquistaram sua liberdade. Esta possibilidade era o terror dos proprietários de escravos no Brasil.

Por essa razão, surgiu uma nova punição: cerca de 20% dos 5 mil negros libertos que habitavam Salvador foram forçados a retornar para a África. Percorreram o caminho contrário. Levaram com eles pedaços da cultura brasileira. A arquitetura na Nigéria recebeu a influência de um estilo chamado casas brasileiras. E muitos dos retornados se referiam ao mundo exterior como sendo a Bahia.

O menino Moïse Kabagambe, congolês, que fugiu da guerra em seu país, deu azar. Seu país foi propriedade particular do Rei Leopoldo II, da Bélgica. País riquíssimo em minérios, vizinho de Angola, é o paraíso de ditadores e revolucionários. Lá ocorreram revoluções de todos os tipos. Até Che Guevara andou por ali, antes de seguir para a Bolívia. É razoável que a família tenha buscado o exílio no Brasil, destino de seus ancestrais. O problema foi se estabelecer na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, capital nacional das milícias. Local onde pobre e preto não devem chamar a polícia. Caetano Veloso, baiano, poeta, seresteiro e cantor, tem razão. O Brasil precisa promover a segunda abolição da escravatura.

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