ROBERTO RODRIGUES
Psicanalista e jornalista
O que fazer quando uma menina de quatro anos diz que não gosta do próprio cabelo crespo? Ou quando os coleguinhas usam termos depreciativos, como "cabelo ruim", para se referir à aparência de crianças negras? Parece surpreendente que esses problemas apareçam tão cedo, mas foi justamente isso que aconteceu na turma da professora Priscilla de Lima Rocha, na escola Nelson Mandela, em São Paulo, que inclui no projeto político-pedagógico o trabalho sobre diversidade como algo prioritário.s
A proposta era que todas as turmas do período da tarde recebessem o nome de uma mulher negra de destaque. A turma de Priscilla ficou responsável por estudar a história de Leci Brandão, famosa sambista carioca. E foi nesse contexto que ela ouviu das crianças sobre as características da raça negra. É óbvio que ninguém nasce com baixa autoestima ou tira do nada expressões racistas. Sem saber, as crianças estavam projetando sobre si mesmas e seus coleguinhas um padrão de beleza que é apresentado como o ideal nas propagandas de televisão e na internet. Como contribuir para que crianças negras cresçam fortalecidas diante de uma sociedade racista?
Uma das preocupações que afetam os pais de crianças negras é ver o filho ter que lidar com situações racistas logo na infância. Pesquisadores do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard (EUA) produziram o estudo "Como o racismo pode afetar o desenvolvimento infantil". De início, a pesquisa afirma que, se não houvesse disparidades raciais na saúde e nos resultados de aprendizagem, os Estados Unidos economizariam bilhões com custos em saúde. A pesquisa aponta que fatores como o desgaste emocional de vivenciar experiências negativas constantes faz com que o cérebro permaneça em estado de alerta a maior parte do tempo, levando áreas cerebrais relacionadas ao medo, à ansiedade ou impulsividade a desenvolver um excesso de conexões neurais.
Ouvi de um pai a seguinte pergunta: "A partir de que idade é preciso falar com crianças negras sobre racismo? E por quê?" E, afinal, como acolher crianças que sofreram algum tipo de ataque racista em ambientes escolares e de recreação? O primeiro ponto no momento de acolhimento de uma criança que foi vítima de racismo é que a gente não pensa que essa criança relativiza o que ela viveu. Existe um impulso do adulto de falar "não, não se deixe abalar. Não se importe com isso". E não dá para falar "não se importe" com uma ferida tão grande, como uma dor ancestral. É preciso antes escutar o que essa criança tem para dizer em vez de dizer para ela que postura deve adotar. Então, após ela conseguir falar e chorar e elaborar a experiência vivida é que devemos avançar com propostas de ação.
O racismo dificulta as relações sociais, gerando, em especial nas vítimas e desde muito cedo, um estresse que alguns especialistas chamam de stress tóxico, um estado de alerta constante. Uma certa expectativa de que a qualquer momento podemos ser vítimas de algum tipo de violência. Em vez de relaxarmos, estamos sempre a aguardar uma dor e a nos mobilizar para reagir a ela. É um estresse crônico com consequências físicas, emocionais e relacionais muito grandes.
E, assim, a criança negra cresce em meio a preocupações, ansiedades e angústias que a branca jamais vai viver ou mesmo saber como é. Como ajudar a fortalecer a saúde emocional e a autoestima de crianças negras? Uma das formas mais eficazes de intervir nesse contexto é dando a elas referências negras positivas. Levar essas crianças a enxergar a negritude positivamente, pessoas como seus familiares e elas mesmas com a mesma cor da pele, com seu cabelo crespo, em postos e lugares de prestígio social aonde também almejam chegar.
Lembro quando jovem falei a um vizinho que desejava ser jornalista de TV. Porém fui desestimulado, porque, na Porto Alegre da década de 1970, não havia jornalista negro na televisão. Portanto, não havia referência, mas essa ausência não me levou a desistir do sonho. Portanto, temos que fazer com que a criança cresça num mundo em que ela se enxergue em diversos lugares.
É importante nessa construção que as façamos sentir o quanto elas são incríveis. Com certeza, conscientes de si mesmas e apoiadas coletivamente, nossas crianças não vão aceitar passivamente a reprodução das mazelas sociais e as dores que são impostos a nós, negros, em razão do racismo. Em vez disso, serão sujeitos e promotores da mudança social que tanto almejamos.
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