Por JORGE FONTOURA - Doutor em direito internacional, é professor e advogado
Na perspectiva infalível do tempo, é possível afirmar que uma das mais importantes publicações acerca do absurdo das guerras foi a peça teatral A guerra de Troia não acontecerá, de Jean Giraudoux (1ª. Ed., Ed.Grasset, Paris, 1935). Tratava-se de alegoria burlesca sobre gregos e troianos, mas, de fato, com fina ironia, um veemente alerta sobre a insanidade que levou a Europa ao maior conflito da humanidade, sem que forças da razão pudessem fazer-se ouvir.
Embora reconhecido berço de cultura comum, a fronteira russo-ucraniana é hoje destinatária de olhares temerosos do mundo, na expectativa da eclosão de imponderável conflito. Como país distinto na erosão da então União Soviética, não obstante o heroico percurso de seu povo, desde as guerras napoleônicas à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria, sobrevivente de invasões, ocupações e deportações, a Ucrânia ainda busca definições essenciais em seu sentir nacional. Vítima de escolhas econômicas e de governos desastrados, o país segue a destilar infortúnios de dependência imputados ao vizinho poderoso, a quem entregou inclusive seu arsenal nuclear.
Com visões de mundo inconciliáveis, entre ódio e amor a russos, a população divide-se em valores e ideais, como na sombria e guerreira Donetsk, disposta a todos os sacrifícios pela grandeza com Moscou, em oposição à colorida e ensolarada Lviv, hedonista e obcecada de Ocidente, de consumismos e modernidades. O dilema se agrava na atual crise, com a tentação de independência açulada com a proposta de adesão à Otan, com apoio aberto dos Estados Unidos e União Europeia. Kiev, capital do país, é síntese desses desencontros medulares, a refletir a Ucrânia dividida e à porta da guerra, grande para ser apenas estado tampão, mas ínfima para enfrentar o vizinho poderoso. Quanto à Rússia, os mapas falam: sem a Ucrânia é país, com a Ucrânia é império.
Sem o pessimismo de cassandras e a bastar a lucidez dos fatos, a iminente intervenção russa que se gesta pode incluir todos os elementos da tempestade perfeita. Envolve a China, com seu trauma de províncias rebeldes e de Taiwan, a Otan e a Casa Branca, sem poupar a União Europeia e tantos terceiros interessados, como Índia e Japão. Imbróglio peculiar, por certo, a lancetar vários dilemas, desembalando cristais e pondo em linha de colisão todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse roldão, emerge a fragilidade da União Europeia, gigante em economia, mas limitada em política externa, máxime na defesa de seus interesses, dividida e vulnerável. Um paradoxo. Afinal, o Tratado de Roma teria sido viga mestra para a Europa coesa, por seus valores e bem-estar, a dissuadir a terceira guerra mundial.
Já disparado o alarme internacional que clama por contensão e por distensão diplomáticas, a engajar grandes chancelarias do mundo, por ora a gesticulação belicista de Moscou nas fronteiras do vizinho rebelde, com mobilização maciça de tropas, lembra a apenas a paz armada do período entre guerras. Quem haverá de dar o primeiro tiro? Também a certeza da imediata imposição de sanções econômicas à Rússia faz com que possa haver algum alento à negociação. Afinal, a Europa é a única grande e possível cliente do tão necessário gás dos Bálcãs, a commodity essencial ao comércio internacional de Moscou.
Há ainda o fator militar a considerar. Na dificuldade de emprego de forças terrestres em terreno distante e inóspito como o das estepes ucranianas — assim sabidas desde Napoleão — estrategistas têm aconselhado apenas apoio logístico a Kiev, de armas e equipamentos bélicos, além de treinamento militar, sem envio de tropas, a guerra por outros meios, por assim dizer.
Como ultima ratio, resta esperar que ainda haja espaço para políticas de apaziguamento, na certeza de serem as guerras, no momento caótico que o mundo atravessa, a mais disruptiva das opções. Também, os riscos de escalada nuclear incontrolável impõem redobrada cautela. Bem a propósito, em havendo o conflito, o confronto nuclear entre superpotências é hipótese não negligenciável, como bem lembra o almirante estadunidense James Stavridis, veterano de conflitos e ex-comandante das forças da Otan: se belonaves de superpotências se engajarem em combate nesta parte do mundo, a tentação nuclear será imensa.
Se decerto a história se repete como farsa, a incontrolável escalada da crise pan-eslava pode agora conferir infeliz e lamentável atualidade ao escritor francês Jean Giroudoux, com A guerra de Troia não acontecerá.