Tenho dois filhos e um neto adolescente. Jamais imaginei perdê-los, seja para a violência urbana, seja para alguma moléstia. Desde que eclodiu a pandemia, procuramos nos cuidar e seguir, rigorosamente, as orientações dos especialistas: uso das máscaras recomendáveis, higienização das mãos, não entrar em casa calçados, uso de álcool 70, distanciamento físico. Pouco nos visitamos no auge da epidemia — os contatos eram por meio virtual. Festejamos a chegada da vacina. Tomamos as doses prescritas, inclusive a de reforço. Voltamos, com cautela, a nos ver.
Perder um filho seria a mutilação da alma; redução do significado da vida. Uma dor insuportável e para a qual não haveria (nem há) remédio. Seria infringir a regra natural: os mais velhos partem antes dos mais novos.
Coloco-me no lugar daqueles que perderam seus filhos, netos, sobrinhos e tantos outros para a covid-19, para a violência desmedida que flagela o país ou para qualquer outra causa evitável. Não consigo sentir a dor de cada um. Mas não tenho a mais sutil dúvida de que é um sofrimento imensurável. Implacável. Fico consternada só em imaginar.
A morte de 301 crianças pela covid-19 não pode ser um fato insignificante. Talvez, a vida de quem despreza tamanha tragédia não tenha significado. Não é o caso das vítimas do vírus, menos ainda das 7 mil vidas infantis, em média, ceifadas por ano pela violência no país.
Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A maioria (56%) deles era negra. Em 2020, foi registrado um aumento de 27% no número de mortes violentas de crianças de até 4 anos. Não à toa, o Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial entre os países mais perigosos para essa parcela, que representa 33% (69,8 milhões) da população.
Até o início de dezembro do ano passado, 1.422 crianças e adolescentes sucumbiram ante a covid-19, segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Desse total, 418 eram menores de um ano, 208 estavam na faixa de um a cinco anos e 796, de 6 a 19 anos. Todas eram criaturas significantes e com imensurável significado para os pais, certamente, para o restante da família e, quem sabe, poderiam fazer a diferença para uma nação inteira.
Quando uma autoridade expressa indiferença às perdas de vidas tenras de forma precoce e por causa evitável, suponho — quase tenho certeza —, que ela não tem apreço por nada. É um ser desprovido de sentimentos, que fazem a diferença entre o ser racional e o irracional. Ela não tem significado para uma sociedade. Torna-se insignificante pela sua incapacidade de ser humana. Porém, é perigosa e, provavelmente, letal.
Meus sentimentos às mães e aos pais que perderam seus filhos pela omissão e pelo descaso do Estado.