A tropa em retirada

ANTONIO CARLOS WILL LUDWIG - Professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e ensino militar (Cortez) e A reforma do ensino médio e a formação para a cidadania (Pontes)

Desde há muito tempo, os militares brasileiros têm exibido um comportamento político notório, e o ponto de partida pode ser localizado no instante da proclamação da República. Desde essa data até meados do século anterior, agiram na forma de um poder moderador. Durante as décadas de 1960 a 1980, assumiram autoritariamente a direção do país. A partir de então, deixaram de lado essas formas de atuação e passaram a se comportar em função das regras do jogo democrático. É bem provável que tal mudança se deva às diversas e relevantes ocorrências que se seguiram e devem ter contribuído para alterar suas concepções em relação à política e à democracia. No período atual, é possível vislumbrar a ocorrência de uma conduta política por parte deles composta de três momentos.

O primeiro, que pode ser denominado de euforia, começou com a candidatura do atual presidente da República. Deixando de lado seu passado, a maioria dos fardados, liderada pelo partido verde-oliva, resolveu escolher o capitão da reserva como candidato preferido. Ele passou a representar o alcance democrático dos militares ao poder, a possibilidade da realização de um governo eficiente e de agrado popular, a oportunidade de se desvencilharem de um passado contestado pelos civis, a chance de evitar uma indesejável vitória de Lula. Após o triunfo, milhares foram convidados e aceitaram ocupar cargos na administração pública, sendo que muitos para lá se dirigiram motivados pelo preceito castrense relativo ao cumprimento de missão.

Quanto ao segundo, possível de ser alcunhado de desencanto, iniciou-se no instante em que o primeiro mandatário deu partida à intenção de cooptar os aquartelados ao seu projeto populista de governo por meio do convite à ocupação de cargos, reestruturação da carreira, verba extra ao Ministério da Defesa. Envolveu também as constantes visitas a quartéis, a declaração de apoio ao exercício do poder moderador, o uso da expressão "meu Exército", as aparições frente ao Quartel General, o desfile de tanques em Brasília, as menções ao período ditatorial e a troca dos comandantes das três Forças. Em decorrência, começou a se formar na mente dos fardados a percepção de que o empenho do chefe da nação em estreitar os liames não se explicava apenas pelo fato de ele ser um militar inativo e um defensor dos interesses da corporação. E, apesar dessas ações, os militares, de modo geral, demonstraram respeito à democracia em várias ocasiões o qual foi devidamente referendado no Sete de Setembro do ano passado.

Em relação ao terceiro, que emergiu nos primórdios deste ano, é aceitável chamá-lo de afastamento, pois indica a abertura e o avanço de um processo de apartação da caserna em relação ao atual presidente. Alguns fatos são reveladores e um deles diz respeito à aceitação pelo general Fernando Azevedo do convite para ocupar o cargo de diretor-geral do Tribunal Superior Eleitoral. Sua presença nesse local tem a ver com o receio de seus ministros quanto às possíveis reações do primeiro mandatário ao andamento das eleições e aos resultados das urnas. No entanto, representa também uma barreira simbólica a favor da democracia por parte dos militares.

Além disso, manifestaram-se outras ocorrências. O Exército emitiu um documento determinando que os exercícios planejados para este ano sejam encerrados até o mês de setembro tendo em vista deixar a tropa livre para possível emprego no período mais próximo das eleições, em atendimento à Justiça Eleitoral, caso venha a acontecer movimentos conturbadores ou até um ato parecido com a invasão do Capitólio. Estabeleceu normas contrárias ao negacionismo presidencial relativas à pandemia. Posicionou-se contra a divulgação de fake news que são apreciadas pelos bolsonaristas. Houve, também, o pronunciamento do almirante Barra Torres, cobrando o recuo ou a retratação do primeiro mandatário sobre sua declaração a respeito da vacina em crianças.

Alguns analistas políticos ensaiaram propor que tais ocorrências têm o significado de uma inclinação para o lado de Lula. Tal suposição leva em conta seu favoritismo eleitoral e o não desejo de revanche, provavelmente imaginário, por parte dele. Considera também os fatos de que, em seu governo, predominou um bom relacionamento entre os dois lados e concretizou-se um reequipamento das Forças Armadas. Acrescente-se que Lula já procurou estabelecer um canal de comunicação com a caserna e essa tentativa mostra a inexistência de barreiras impeditivas, nem mesmo a do tuíte do general Villas-Bôas.

Embora esse modo de pensar possa ser sustentado, faz-se necessário juntar outra argumentação mais pertinente. Pela natureza da profissão, os militares valorizam o pensamento e o conhecimento científico, o qual não se coaduna com o negacionismo presidencial. São seguidores do pragmatismo e do consequencialismo, os quais se mostram incongruentes com os péssimos resultados da hodierna administração pública. Devem ter percebido que a ocupação de cargos estatais bem como a proximidade com o primeiro mandatário promoveu arranhões na imagem das Forças Armadas e diminuiu o prestígio delas perante a sociedade. Possivelmente, notaram que, durante esses anos, a população passou a desconfiar das intenções políticas de seus integrantes.

Portanto, é válido inferir que tais ocorrências indicam que os militares aparentam estar pesarosos e que almejam manter uma postura de equidistância, segundo as diretrizes protocolares, neste resto de mandato bem como nos anos vindouros, independentemente de quem ganhar a eleição. Parece também que pretendem se cingir ao cumprimento das obrigações profissionais estabelecidas na Constituição e perseverar na submissão às normas do regime democrático.