Elza Soares, que morreu aos 91 anos, deixando uma lacuna enorme no país por sua arte, sua força como mulher e seu engajamento em questões sociais e raciais, era síntese das mazelas do Brasil. Nascida e criada em uma favela do Rio de Janeiro, foi obrigada pelo pai a se casar aos 12 anos de idade. Aos 13, já era mãe. Com 15, já tinha perdido dois filhos para a fome. Ficou viúva aos 21. Ao longo de boa parte da vida, foi vítima de violência doméstica, do machismo e da discriminação. Mas, guerreira, não sucumbiu à fome, à morte dos filhos, à perseguição da ditadura e ao esquecimento pela indústria musical, que quase a fez abandonar a carreira. Eleita a voz do milênio, reinventou-se e tornou-se um ícone para a juventude. Até o último dia de vida fez o que mais gostava: cantar.
O Brasil é formado por milhões de Elzas, que enfrentam diariamente a batalha pela sobrevivência e superação. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) apontam que 34,4 milhões das famílias são chefiadas por mulheres. É quase a metade (48%) dos lares do país. Dessas famílias, aproximadamente 55,5% são comandadas por mulheres negras. Delas, 63% estão abaixo da linha da pobreza. Vivem na miséria, mais especificamente, no planeta fome, do qual Elza Soares disse ter saído quando, em 1953, fez um teste para a rádio Tupi. Praticamente 70 anos depois, 20 milhões de pessoas continuam habitando esse planeta e outras 100 milhões vivem em sua órbita, em insegurança alimentar.
Nesse mesmo planeta, uma mulher é morta a cada seis horas e meia, vítima de feminicídio — em 2020, último ano com dados consolidados disponíveis, foram 1.350 crimes. Três de cada quatro vítimas tinham entre 19 e 44 anos. A maioria (61,8%) era negra. Em geral, o agressor é uma pessoa conhecida: 81,5% dos assassinos eram companheiros ou ex-companheiros. Nos últimos 20 anos, 51% das mulheres vítimas de violência letal foram mortas por disparo de armas de fogo, segundo o Instituto Sou da Paz, com base em dados dos sistemas de notificação de violência do Ministério da Saúde. Desse total, 70,5% eram mulheres negras (51,8% tinham até 29 anos de idade).
Esse é o retrato mais cruel de como é ser mulher e negra no Brasil. Porém, mesmo entre aquelas que conseguiram furar a bolha do racismo estrutural, a discriminação continua presente. No mercado de trabalho, a média salarial das mulheres chega a ser 70% menor do que a de mulheres brancas. Quando se olha apenas para as tralhadoras negras com curso superior, calcula o Instituto Locomotivas, o rendimento médio mensal é de R$ 3.712 contra R$ 4.760 das mulheres brancas. São raríssimos os casos de trabalhadoras negras em cargos de direção de empresas, mesmo com toda a pressão para que a diversidade prevaleça.
Elza Soares conseguiu, com todos os méritos e por não se render, superar os obstáculos impostos pela sociedade, mas a maioria das mulheres negras, de origem humilde, ainda estão distante do bem-estar social previsto na Constituição. O racismo, o machismo e a intolerância continuam prevalecendo num Brasil que vê a desigualdade social aumentar e a miséria destruir vidas. E só há um caminho para mudar essa realidade assustadora, a educação. É no banco das escolas que meninas negras e pobres vão mudar seus destinos. Para isso, o Estado tem de fazer a sua parte. A ausência de políticas públicas consistentes não pode mais condenar milhões de Elzas à pobreza e a perderem a vida ainda na juventude somente por serem do sexo feminino e negras. Basta dessa barbárie.